quarta-feira, 28 de março de 2012

M 41 - 1984/09/12 a 12/31

1984/09/12
a
1984/12/31

Lisboa \\ 12-9-1984
Maneiras de Chorar
Por via de regra, surgem espontâneas, havendo porém casos, em que são estudadas. Habitualmente, denota o choro prostração de alma, por alguém ver gorados, anseios e planos, que muito apreciava. São desilusões, decepções tremendas, germes danosos, que se instalam no peito, abrindo aí feridas, que muito apoquentam.
São ainda barreiras e sólidos travões, que se deparam, nos caminhos a trilhar. Ou então espinho, que alguém, porfioso, lançou em nossa via, para ferir-nos os pés. Inúmeras são, em boa verdade, as causas da tristeza, que provoca lágrimas. Estas, no entanto, expressam-se e caem diferentemente, em cada um de nós. Algumas vezes, abismam-se logo em fundo silêncio e profunda mudez, aparentando fontes, que a secura esgotou. Outras ainda, brotam as lágrimas com tanta unção, brandura e acento, que a todos comovem, gerando nos estranhos forte comoção!
Acontece também percorrerem as faces, no meio de um berreiro, que se torna intragável! Já tem sucedido haver de afastar-me, com grande presteza, por não suportar a grita infernal, puxada e selvagem, que se ergue, ao lado. Este processo afigura-se estudado, saturante e mecânico. Obedece ele a um formulário, com intento secreto de atirar pó aos olhos dos outros.
É um modo fingido, hipócrita e falso de exprimir ali aquilo que não sentem. Para quê? Eles é que sabem! Dar satisfação a exigências do mundo, que não acha bem atitudes diferentes?! Aparentar alguém aquilo que não é, para fazer-se amado?! Quanto a mim, detesto e verbero tal encenamento! Nem à distância posso aguentá-lo!

Lisboa \\ 13-9-1984
Nem sempre acontece
Entre as surpresas, algumas se deparam, que são curiosas. Boas ou más?! Não é tal aspecto que agora me ocupa! Antes, sim, o que tem de especial, inesperado e excitante a que, há dias me tomou. Referi atrás, um belo amigo, que dá pelo nome de António Duarte. Autodidata, cultiva-se por gosto, dando-se à leitura, que muito o distrai, revigorando-lhe a mente.
Durante o diálogo, veio também a pêlo a questão dos meus livros, que esperam na gaveta a hora de lançar. Como ele sabe disso, logo que me encontra, vem esta pergunta: “Então, quando sai a lume? É já bom tempo de tomar resoluções, em tal matéria!” A conversa alonga-se, tomando visos de não acabar e o assunto ali, dá pano para mangas!
Razões e pretextos saltam aos montes, na arena da luta. Ele, então, esmera-se e timbra em pôr-me questões, para facilitar as minhas resoluções. Interroga e escuta, desfaz e pulveriza os motivos que aponto. Que não cheguem os 70, permanecendo hesitante! É tempo já! Não espere mais!
Depois, acrescenta: ”Agora que está lúcido, aproveite a ocasião! Chamado à televisão, como pode agir, sendo já senil?!
Eu, então, ouço enleado medindo e pesando os seus argumentos, a que acho graça e forte realismo. Há dias já, lançou-me a rasteira, que julgava eficiente. Pergunta ele: ”É falta de dinheiro? Se for isso, remedeia-se o caso! Eu não sou rico, muito menos capitalista ou milionário, no entanto, arranjo-lhe para já 500 contos ou mesmo 600!”
Fiquei-me a olhar para aquela abundância e rara saída, que não é vulgar, no tempo corrente.
Bom prenúncio? Veremos depois! O primeiro livro é que vai decidir! A sorte dos outros fia-se daquele!

Lisboa \\ 23-9-1984
Aquele Jovem
Deparou-se-me há pouco, na manhã de hoje. A um quarto para as 8, aguardava eu que chegasse breve o 49 ou ainda o 27, a fim de alcançar o Largo de Alcântara. Dentro em pouco, devia com efeito estar na igreja, onde tinha deveres que exigiam presença. Juntamente, achava-se mais alguém esperando a viatura.
Entretanto, nenhum dos restantes me chamou a atenção, pois nada encontrei passível de reparo. O jovem, porém, que andará pelos 18 e se julga importante, estava sentado e olhava inquieto, ao longo da estrada. Algo desalinhado, na maneira de vestir, era -o por igual em outros aspectos, como passo a dizer.
Em primeiro lugar, fez uma pergunta, que dirigia a mim: ”Tem horas que me diga?” Eu, então, mercê de factores que vou citar, recuso-me sempre a dar resposta. Isto, afinal, por duas razões: 1. Em nossos dias, vive-se geralmente de hábeis expedientes, embustes e argúcia. Por isso, evito mostrar aquilo que possuo e me podem extorquir, nessa mesma hora. 2. Porque, na verdade, seria bem penoso atender os pedidos que chovem sobre mim, ao longo da via.
“Tem horas que me diga? Horas, por favor! ”Não!” Alego uma desculpa, que seja aceitável e até corresponda à própria verdade: “não vejo sem óculos!” Pronto! Está o caso arrumado! O pior, no entanto, estava para vir! Prestando ali maior atenção, fiquei enojado! Aquele sujeito cuspia, cuspia, à razão de uma ‘carrada’ por cada minuto! Que grande maçada! Oh! sujeira dos demónios! Fazia-o com destreza, filha, já se vê, de grande tirocínio! Cuspia para um lado e, logo em seguida, para a outra banda!
Quem vai ali sentar-se?! É isto admissíve?! Fazer do passeio um curral de imundícies?! A casa dele há-de estar bonita!

Lisboa \\ 2-10-1984
Ameaço de Tempestade
A este propósito, lembra-me Angola e o próprio vizinho, Sudoeste Africano, onde pude assistir a medonhas trovoadas, com chuva a cântaros. Uma vez, fui surpreendido, na capital do Bié, por um desses temporais, que nos enchem o físico, em breves segundos! Atravessar a estrada, é já suficiente para tal efeito. Entretanto, aqueles que lá nascem ou têm vários anos de permanência ali, acautelam-se a tempo. A mim, porém, faltava-me o calo, pois era noviço. Bom! Tive de aguentar e cara alegre! O uso, porém, foi-me ensinando
Que notei eu lá? Em primeiro lugar, não se via na rua sombra de nada! Homens e gados, aves e insectos, tudo se apresenta como não existindo! Por outro lado, um silêncio de túmulo reina, por toda a parte! Mercê deste facto, inquiri dos motivos, que levavam os seres a fugir e proteger-se! Haveria, com certeza, alguns sintomas, denunciadores! Observando, pois, vim a descobri-los!
Primeiramente, embora nem sempre, soberbas trovoadas, a fulgirem, distantes, estrondeando fortemente, pela enorme amplidão! Parece coisa estranha e que não nos respeita. Sucede, não raro, serem diversas, actuando em compita e, às vezes, em simultâneo. É o belo horrível, quando se aproximam e fazem ostentação da sua potência!
Em seguida, vêm-se abeirando, enquanto densas nuvens, espessas e negras lhes fazem cortejo. Há, então mudança: tudo se afecta! A tempestade é que não, uma vez que, num credo, já chova a potes!

Lisboa \\ 3-10-1984
Continuação
Bom! Abrigados nós, em qualquer refúgio, que não seja árvore, pois isso é danoso, por causa das faíscas, o vendaval expande-se, fustiga e enxota. Pobre do incauto ou daquele infeliz, que não tem à mão nada que o sirva! Ontem, por sinal, lembrou-me tudo isto, a propósito de cenas, ocorridas nos veículos. Em África, pois, uma vez amestrado, refugiava-me, a tempo, em lugar seguro.
Gostaria também, de fazer a mesma coisa, aqui em Lisboa, descobertos os sinais que falam por si. Não me foram estranhos, que bem o notei, juntinho a mim! As circunstâncias, porém, é que eram outras! Fugir para onde?! Como realizá-lo?!
Mas importa, de antemão, expor devidamente esses casos bem tristes! O primeiro de todos, ocorreu de manhã, vindo eu de Alcântara, rumo a Belém. O auto-carro laranja, número 49, estava a pôr-se em marcha, quando um sujeito, ali a meu lado, atira da janela, sem mais nem para quê, um escarro nauseabundo! Nem quero falar, acerca dos efeitos! O cavalheiro oscilou, com meneios peculiares, resultado, já se vê, da trepidação.
Ignorava eu, com sólidas razões, se o dito escarro transporia de facto, a estreita abertura ou então, se viria talvez, de ricochete, impelido pelo vento, para cair sobre mim! Escusado é dizer quanto eu me enervei! Quase adoeci! Durante o percurso, jamais tive paz, As respostas das gentes corriam receando, a toda a hora que o javardo repetisse! É que o vento soprava para dentro, na minha direcção!
Lá na África, era dado fugir, mas ali, como fazê-lo?! O pior é que, de tarde, na rodoviária Belém-Amadora, sucedeu a mesma coisa, ainda agravada! Será isto viver?! Poderei ser feliz, no meio de tais sebentos?! Não chegarão já os meus problemas?!

Lisboa \\ 4-10-1984
A Grande Reportagem
Aguardava-se o facto, com muita ansiedade. Teríamos a sorte de vê-la, a rigor, no vasto espelho da televisão?! As respostas das gentes corriam desencontradas, pois havia defensores e iguais opositores. Já de outras vezes o caso fora posto mas sempre terminava por nada haver! Razões políticas? O mundo de Angola?! Outras razões a juntar a estas?!
A grande reportagem não se realizava. Aquilo, de facto, moía-me o juízo! Porquê?! Não é Portugal um Estado democrático? Em tais sociedades, tudo se permite! Caso contrário, não há democracia! Por estas razões, ninguém leva a mal! Gostaria, de facto, que o governo de Angola vivesse em harmonia com os nossos governantes. Lucrariam os nativos e nós igualmente! O que não podemos é andar neste jogo! Já cheira mal!
Se fosse proibida a Grande Reportagem, teríamos, na verdade, a feia Ditadura! Um governo, sim, mas totalitário! O governo de Angola a servir de espião ao governo português! Coisa mais parva não pode imaginar-se! Se a UNITA é de facto um Partido sério e nacionalista, de 4 costados, como pode, realmente, o MPLA embarcar na aventura do Partido único?! Além disso, a gente de Savimbi tem maior volume e é mais popular!
Mas há outra razão, que a todas sobreleva: o Tratado de Alvor! Foi ali decidido, entre o nosso governo e os Partidos angolanos, que a chefia da nação ficava distribuída pelos três Movimentos.
Por que é que a UNITA vive na Mata, há já tantos anos?! Para mais, é ela, na verdade, o Partido Maior e de mais patriotismo! Todo o mundo sabe isso.

Lisboa \\ 5-10-1984
Continuação
Foi grato para mim deixarem-me ao corrente do que vai por Angola. É que eu, realmente, não posso esquecer o mundo querido que foi português e ostenta os sinais do acto heróico e civilizador. Quantos sacrifícios, quantas canseiras e sangue derramado, para guardar o imenso território, que hoje forma Angola!
É uma gesta nobre, heróica e bela, em que os nossos guerreiros, heróis e santos se houveram com denodo e galhardia! Os braços de Portugal actuaram por ali, ficando assim pedaços da alma lusitana.
Vivi três anos, por terras do Bié. Mais uma razão, para amar Angola e o bem do povo, agora mártir, cheio de fome e até escorraçado. Povo mártir, sim, dilacerado já por fera guerra – a pior de todas! Não é guerra civil?! Não se destrói a própria raça, combatendo assim?! Guerra civil, há já 10 anos! Não se teme a Deus! Que horrendo crime! Seremos julgados pelo Supremo Juiz! Não se ama Angola, cuja destruição se vai elaborando?! Por tudo isto, fiquei eu radiante com a Grande Reportagem. Quero saber o que vai por ali. Exige-o, de facto o próprio coração!
Foi grande e extensa a dita Reportagem, no entanto, se mais dissesse ainda, estaríamos presentes! Tanto agradou, que houve a impressão de não ser extensa! Para eu ouvir, tive de alterar o programa de acção, o que só tenho feito, ao longo da vida, em raríssimos casos! Quando ela começou, já eu naturalmente, devia estar no leito. Contudo, isso não o fiz, por amor de Angola! Permanecer ignorante daquilo que amo e tanto prezo?! Em nome de que lei?!
Não tenho o direito de ser informado?! Quem pode coarctar a minha liberdade, em tal assunto?! Se Deus o não faz!

Lisboa \\ 6-10- 1984
Continuação
Havendo assistido à Grande Reportagem, pela televisão, recordei muitas coisas, vistas em Angola e fiquei ao par de muitíssimas outras, que eu próprio ignorava. Por esta razão, pensei uma vez mais, acerca dos factos e cheguei a conclusões que desejo registar. Como pode, realmente, o governo de Angola convencer o Mundo, utilizando a mentira, acerca da UNITA?! Ignorá-la simplesmente, como sendo um bando armado, que a ninguém fazia sombra?! Constava isso, por via oficial!
Eu, no entanto, que vivi em Angola, conhecia os factos na própria origem. Aqueles, porém, que só ouviam contar o que ali se passava, corriam o perigo de ser enganados, formando erradamente a sua consciência. Um grupo de bandidos!
Que foi, na verdade o que afirmou Savimbi, na televisão?! Trinta mil homens, bem preparados, com boa formação e armas de guerra, em grande profusão, é coisa de ignorar?! A sua instalação, no próprio território, dominando inteiramente um terço, bem medido, no solo angolano, é coisa despicienda?! Agir e sabotar, no país inteiro, sem excluir as grandes cidades, portos e bases é assunto banal?
Fazer-se, no país, a distribuição dos próprios alimentos, só por via aérea, de não ser possível utilizar o solo, isso não é nada?! Ter o solo ocupado, com bases inexpugnáveis, sem possibilidade que permita ao governo destruí-las para sempre ou que delas se aproxime, não diz nada ainda às gentes de agora?!
Ser o único Partido, que deveras ama Angola e as suas gentes?! Por estar ao serviço de potências estrangeiras, não conta para a História?!

Lisboa \\ 7-10-1984
Continuação
Não acabaria, se quisesse realmente incluir, na íntegra, aquelas razões, que militam fortemente a favor da UNITA! Pois se falo de Savimbi?! Alegrei-me de o ver, embora, em imagem! É um chefe carismático! Vulto incomparável! Desde 1961, que vive instalado, nas matas de Angola, sujeitando-se a carências que outros chefes não toleram! Comparemo-lo já, com líderes conhecidos.
Holden Roberto, que chefiava a FNLA, viveu alguma vez com os seus guerrilheiros, partilhando com eles alegrias e tristezas? Sujeitando-se a tudo, que a guerrilha exige, sem temer a morte?! Agostinho Neto, que era de facto um chefe prestigioso, por quem tive admiração, estima e apreço, decidiu alguma vez encerrar-se na mata e privar-se de conforto, bem-estar e segurança?! Isto apenas Savimbi, que é um homem excepcional, cheio de senso prático, enorme equilíbrio e largueza de espírito!
Vi, com surpresa o notável progresso da sua aguerrida gente! Nenhum ramo se descura: a área agrícola; administrativa, social e cultural; medico- religiosa e até moral! Não impõe a Religião! Cada um segue em paz, a que elegeu e tomou para si. Quanto a prisioneiros, autêntica surpresa e grande maravilha! Manda-os tratar com grande humanidade. Não há violências, retaliações, modos agressivos! Não é isto admirável?!
Os seus grandes inimigos estão dentro da regra! Sofrem, é claro, mas não de maus tratos ou fome que passem! Não foi isto declarado (não estou inventando!) por aqueles mesmos da Cortina de Ferro?! O que os traz abatidos é a triste solidão, o grande isolamento, a privação de contactos com gente conhecida, de modo especial as suas famílias.
Grande Savimbi! Deus te ajude agora a libertar da morte o povo mártir da querida Angola!

Lisboa \\ 8-10-1984
A Paciência?!
Entre as qualidades que mais nobilitam a pessoa humana, ocupa, decerto, lugar especial. De facto, ela tem na vida papel relevante. A propósito: o que eu mais admiro em Deus, nosso Pai, é exactamente a sua paciência. Governar tanta gente, com maneiras de ver, as mais variadas, tomando em conta a idade, crenças e hábitos, povos e raças, inúmeras tendências, o volume gigantesco - a Humanidade inteira - como é possível haver paciência, de tamanha grandeza! A verdade, porém, é que ela existe, pois Deus não pune imediatamente!
Espera e ajuda, solicita e chama, pede e implora! Exemplo magnífico, para tomarmos em conta, e seguirmos na vida! A pergunta do topo não se refere a Deus, que, por ser infinito, satisfaz a tudo, em grau supremo. Tem em vista a pessoa. Mais concretamente: é um caso pessoal.
Veio-me hoje a suspeita de que alguém me provoca, usando para tanto, meios sub-reptícios. Havia muito já, que eu andava em brasas, olhando, claro se vê, a diversas atitudes. Mas, de momento, não sei porquê, gerou-se em mim novo pensar. Fundamento? Maneira de proceder, com bastante insistência. Foi isso, realmente, que veio alertar-me! Por outro lado, a posição escolhida, o ruído empregado e o próprio lugar!
Bom! O caso é este: nada existe aí que não tenha solução! Como ponto de partida: pode não ser aquilo que julgo! Daí, muita prudência, tino e cautela! Caso seja o que penso, não vou precipitar-me! Preciso enormemente, de controlo e segurança, porque a dita pessoa é desequilibrada! Motivos humanos e sobrenaturais requerem de mim, grande cautela!

Lisboa \\ 9-10-1984
Novo programa teve já início na televisão. Tem agora o nome de “ziguezague”. Pela designação, não posso avaliar o que teremos de ver! No entanto há, segundo bem creio, boas perspectivas, se atendo ao que ouço. Infelizmente, não pude verificá-lo, estando presente! Só cheguei no fim, quando a locutora já espevitava a curiosidade e o gosto do público. Ouvi-lhe dizer as seguintes palavras: ”Não se esqueçam do nosso programa! No próximo domingo, cá esperamos por vós!”
Fiquei desorientado com esta violação das normas gramaticais, ante o público luso, que julga aprender, mas o não faz, por andar enganado! Não sei, realmente, qual é a intenção da nossa locutora, mas suponho que agiu conscientemente. No primeiro caso, para justificar o nome do programa, que é “ziguezague”, utilizando linguagem própria, ordenada em ziguezague?! Sendo assim, como professor de Língua Portuguesa, devo advertir: com coisas sérias não podemos brincar!
Se agiu, de facto, inconscientemente, proponho mostrar-lhe, com muita nitidez, onde se encontra a falta lastimosa. “Não se esqueçam”é terceira pessoa do número plural, no presente conjuntivo, usado agora como imperativo. Qual é o sujeito desta oração? Entendo que há-de ser o que fica a seguir; os senhores, as senhoras; os meninos, as meninas; os telespectadores; os meus amigos e boas amigas; vossas excelências. Esta parte não merece reparos.
É, na verdade, o tratamento cortês. A nossa Língua, em caso semelhante, recorre, de facto, à terceira pessoa; o senhor é gentil: devo dizer-lhe que muito o aprecio.
Vem agora a segunda parte, em que nos aparece o tratamento de : “tu’: ”Cá esperamos por vós”.

Lisboa \\ 10-10-1984
Continuação
A parte analisada, no Diário anterior, fica muito bem, nos lábios de uma jovem ou qualquer pessoa que seja educada, gentil e nobre. Os telespectadores são desconhecidos, por modo geral. Além disso, há elementos idosos, que merecem, de facto, acatamento e veneração. Tratá-los por ‘tu’ era dar provas de muita grossaria, denotando assim ‘falta de chá,’ logo em pequenos. O tratamento de cortesia fica, pois, a matar! Por outro lado está segundo as regras, que o uso da Língua já consagrou.
Para subordinados ou então iguais, pode usar-se o termo ‘vocês’. Nunca, evidentemente, para superiores ou pessoas mais velhas. O exemplo do Brasil não deve seguir-se, neste particular. É julgado ofensivo, cá entre nós. A segunda frase, que deve ficar em linha com a precedente, vem destoar, pois nos apresenta a segunda pessoa, em vez da terceira. “Cá esperamos por vós”. Como é isto?! Alhos com bugalhos?! Que salgalhada é esta?! Já se não evitam os feios solecismos?! Abastarda-se a Língua, usando-a a capricho?!
Não pode ser! Terceira com terceira; segunda com segunda! Como vai ser a maneira correcta? Não é difícil. Se nós dissermos: “Não vos esqueçais! Domingo, cá esperamos por vós”, a frase está correcta, não havendo reparos que devam fazer-se! Segunda com segunda!
Querendo, no entanto, empregar a forma, que exprime cortesia, necessário se torna recorrer, desde logo, à terceira pessoa, em ambas as frases: “Não se esqueçam do nosso programa. Domingo, cá os esperamos”. O pronome ‘os’ que ali figura designa, pois: os senhores, as senhoras, os meninos e as meninas; vossas excelências; os meus amigos e amigas.

Lisboa \\ 11-10-1984
A Nova Gramática
Ao longo da vida, amei sobremodo a Língua Portuguesa, que estudei com afinco, solicitude e zelo extremo. Mercê deste facto, procurava deslindar o que houvesse de obscuro e, ao mesmo tempo, inteirar-me a rigor da opinião dos gramáticos, amadores e filólogos. Sem vaidade o confesso: achava-me a par de questões semelhantes, porque, além do mais, sentia prazer em tal aplicação!
Indo para Angola, devido à guerrilha, que restringia os nossos movimentos e certas deslocações, fiquei desligado e quase à margem de tais assuntos. Cerca de oito anos, por matas cerradas, climas inóspitos e terra bravia! Os quase 5 anos que levo em Portugal, consagrei-os à escrita, que não chegou ao fim. As consequências fazem sentir-se! As novas técnicas iam-me escapando, se bem que, no fundo, a coisa é a mesma!
Saber Português é ler e entender, falar correctamente e escrever com arte. No campo da Gramática, houve, de facto, algumas inovações, que não reputo básicas nem essenciais. Entretanto, fornecem apanhados, que abraçam em globo as frases do texto. Como visão de todo o conjunto, acho isso interessante! Neste aspecto, facilitam a análise de carácter ideológico, ajudando também, embora não muito, a interpretar!
O que achei original foram os sintagmas e assim os verbos, transitivos indirectos. Dizia-se antes: verbo transitivo é o que pede complemento directo. Agora, se bem entendi havemos de juntar: ou indirecto. Assim nos aparecem verbos transitivos directos e indirectos. Exemplo: o Mestre dá o livro ao aluno.

Lisboa \\ 12-10-1984
Continuação - Sintagmas
São grupos de palavras que mantêm entre si uma relação determinada e exercem também uma função sintáctica. Há sintagmas nominais e sintagmas verbais. Além destes, que são como dizem, constituintes necessários, há sintagmas adverbiais, preposicionais e adjectivais. Num sintagma maior, pode haver outros que se dizem menores ou de menor extensão.
Para esclarecer, convém dar exemplos:
1. Sintagma nominal: ”o cão é mortal”. O sujeito, indicado por SN1, tem a precedê-lo um artigo definido, que chamamos ‘determinante’. Por vezes, encontram-se os sinais: SN2.Trata-se de complemento directo.
2. Sintagma verbal: ”A avó ralha”. Nesta frase, ‘ralha’ é o sintagma verbal, considerado também por constituinte necessário. Na frase: “o pai deu um prémio ao António”, “um prémio” é o sintagma nominal 2.
As orações, quanto ao sentido, agrupam-se em substantivas, adjectivas e adverbiais, segundo equivalem a um substantivo, adjectivo ou a circunstâncias (denominação já antiga). Assim, na frase: “ignoro quanto custa a vida” que equivale, decerto a: “ignoro o custo da vida”, a segunda oração é um sintagma nominal SN2. Atentemos noutra frase: “a pessoa que observaste é muito alegre”…’que observaste’, equivale a ‘observada’. É, portanto adjectival.
“Ao passar à tua casa”, “quando passava” … circunstancial de tempo (sintagma adverbial).

Lisboa \\ 14-10 -1984
Verbos locativos e copulativos.
Os primeiros: vir, chegar, partir, sair, ir, subir, descer (todos os que exprimem movimento, indicando já o ponto de partida, como o de chegada ou apenas um deles). Os segundos: ser, estar, parecer, ficar, andar (nem sempre), etc. Os segundos designavam-se por verbos copulativos ou de significação indefinida: ligam o sujeito ao predicativo – “João é bondoso”. Sintagma adjectival, que exprime qualidade.
Vejamos, a propósito, alguns exemplos, a fim de me esclarecer um pouco melhor. “António partiu ontem de Lisboa e chega hoje a Berna”. Nesta frase, há dois verbos locativos: partir e chegar: aquele, no pretérito perfeito; este, no presente. “De Lisboa e “a Berna” são sintagmas preposicionais, indicando o primeiro o lugar donde; o segundo, o lugar para onde. No período em estudo, há duas orações, coordenadas, uma à outra. São iguais em importância: cada uma delas em dois sintagmas: SN e SV. As duas palavras “ontem” e “hoje”são elementos móveis e não essenciais.
Quanto a verbos copulativos (de significação indefinida), notemos o que segue, em: “António é bom rapaz”. O copulativo ‘é’ liga o sintagma nominal ‘António’ ao predicativo (qualidade que se afirma do sujeito).
Sintagma nominal SN (António); SV (é bom rapaz). Verbo ‘é’ e predicativo formam o predicado. ‘Bom’ é sintagma adjectival, que serve de atributo, a exprimir qualidade, existente no sujeito.

Lisboa \\ 15-10-1984
Novo Encontro
Nesta esfera, há bom e mau, como é sabido. Encontros aí há que são mortificantes, operando nas almas qual frecha eivada. Outros, porém, são logo portadores de luz diamantina, que vem inebriar e dar conforto à alma angustiada. Estivesse ao alcance escolhê-los sempre! Infelizmente, a vida não permite que façamos isso! Temos de curvar-nos, perante a realidade que, às vezes, é ingrata! Apesar de tudo, nem sempre o diabo se encontra atrás da porta!
Desta vez, assim foi, realmente. Melhor: assim há-de ser aquilo que espero. Ontem, à boca da noite, fiz diligências, para localizar um belo amigo, que há muito não via. Fizera-o já antes, mas sem bom êxito. Confirmou-se o dito: Quem teima vence! De facto, assim aconteceu. Um telefonema resolveu-me a questão: 977194, algures na Amadora. Talvez melhor: na Reboleira, que fica juntinho. Indagação, dum lado, pergunta do outro, chegara finalmente, a cifra ansiada, via possível, que daria a chave.
- É o padre Sampaio?
- Ele mesmo!
Bem identificados, lembrámos o passado e os percalços da vida, assim como os entalões, que bastante nos oprimiram, ao longo da existência. Contudo, urgia dialogarmos com mais pormenor e em presença! Assuntos há, que não podem tratar-se, por via telefónica. Combinámos, pois, um encontro amigo, pelas 18 horas. Para tanto, forneci-lhe dados, a fim de me encontrar, no próximo regresso de Mem-Martins, onde exerce o magistério.
Aguardo, pois, aquele bom amigo, na exígua Rua 27 de Junho, 6 - 3º Esquerdo, na cidade de Amadora. Hoje, ocorrerá, se Deus quiser.

Amadora \\ 16-10-1984
Continuação
Palavra de rei não volta atrás! O prometido é devido! Não foi exactamente à hora combinada, mas realizou-se um nada mais tarde. Pelas 6 e 35, premia a campainha o amigo Sampaio. Primeiramente, a do 3º esquerdo; em seguida, como fora combinado, a do 2 º Esquerdo.
Às 6 e 30, chegava eu, precisamente, ao número 6. Ele não estava. Atraso? Afinal, era coisa diferente! Engano redondo e troca de rua! Bom, mas isso não contava, pois o meu amigo surgia brevemente na escadaria, subindo como jovem! Haviam decorrido uns 24 anos, alguns dos quais (boa maioria), em grandes apertos, como também os meus! Um quarto de século já pesa na vida, opera mudanças psico-somáticas, altera conceitos e permite, às vezes, reencontrar o caminho, que devia seguir-se e que outros barraram.
Chega ao pé de mim e vem o grande abraço. É ele todo, na sua expansão, jovialidade, larga abertura e sinceridade! Os anos de Manteigas, vividos no presbitério, não tinham esquecido! Falámos então, cada um de por si, acerca de mágoas e fortes decepções! É, na verdade, o camarada sincero e esplêndido amigo, marcado agora pelo tempo decorrido, que jamais perdoa!
Nem só pelo tempo! Vicissitudes da vida, amargos contratempos, fundas injustiças; encontrões e desalentos; solidão e abandono! Tudo isso pesando, confere ao rosto e seu olhar a marca dos ferros e duros grilhões, que mentalidades e férreos sistemas forjaram um dia, só para abaixar e logo deprimir!
Folgámos imenso, de haver-nos encontrado! Tão grande foi o júbilo, que vamos em breve almoçar os dois, escolhendo uma tarde, para a nossa expansão!

Lisboa - Belém \\ 17-10-1984
O Latim
Como é sabido, a Língua portuguesa deve boa parte das suas raízes à Língua do Lácio. Por isso, a designamos como românica, à semelhança de outras, faladas na Europa. Também vigora o nome de novi-latinas. Sendo isto assim, reveste desde logo importância capital o estudo meticuloso daquele idioma. Entender a filha sem conhecer o meio gerador não é possível. Eu até iria um pouco mais longe: ignorando a relação entre filha e mãe! Para mim, a Língua portuguesa é o próprio Latim, numa das fases da sua evolução.
Pelo que fica exarado, tenho a impressão de que haja desamor, em ordem ao Latim. Dois factos marcantes me chamam a atenção e deixam banzado. Interesse crescente por tal idioma, nos mesmos países de Língua germânica, havendo a salientar os Estados Unidos, Alemanha e Áustria. Nem ponho o Inglês, cujo vocabulário é de origem latina, em 60 a 70%. Se ela não pertence ao grupo das românicas, é por uma razão de carácter sintáctico.
Como explicar este contra-senso?! Quem bastante mais a devia prezar é que sente desprezo! Quem devia prezá-lo um tanto menos, é que mais a aprecia! Bom. Estes são os factos! Até há poucos anos, primavam os Seminários pelo estudo aprofundado e assaz intenso desta Língua morta. Ora bem. Quando estive em África, alguém me informou de haver Seminários em que não se estudava una única palavra. Eliminado pura e simplesmente!
Alguma coisa haverá que se encontra errada! Qual é, de facto?! De que parte?! Este desamor é coisa lastimosa, por mais de uma razão, que gostaria de expor, havendo oportunidade, em futuro Diário. Vejo dois motivos: aplanar dificuldades, na Língua nacional; ser fonte base de cultura universal

Lisboa - Belém // 18-10-1984
Continuação - Como era o Latim, no meu tempo de estudo
Causa-me arrepios, só de o lembrar! Refiro-me propriamente não ao Latim, mas antes ao processo, como era ensinado. Nem digo bem. Aquilo, realmente, nem era ensinar! Antes, verificar o que outrem fazia, debruçado nos livros, horas e horas, sem entender! Dá-me ganas imensas de votar ao ostracismo esses malfeitores, que podiam fadar-me para o Manicómio! Estudava-se a Gramática: “Vem da página tal até ao fim do capítulo!”
E eu, então, que ignorava o Português e não lidara, na aldeia, com Línguas estrangeiras, passava horas negras, para encontrar um mero significado, no Dicionário Latino. Bela Pedagogia! Nem o nome lhe sabiam! Para que é que serviram aqueles amontoados de regras sem fim, que devíamos fixar?! Pobre memória! Atafulhada com palavras exóticas, regras sem fim e várias construções, que para nada serviam, trabalhava sem proveito!
Hoje, ao invés, levou um pontapé, que a deixou a dormir! Reconheço, na verdade, que o Latim é útil, mas há-de ser ministrado, em bases diferentes. O professor deve ser especializado e ter competência. Caso contrário, é uma desgraça para os míseros alunos! Deve também ser bom pedagogo! O texto seguinte há-de ser preparado pelo professor, dando aos alunos a chave do mesmo!
Os passos difíceis e bem assim as construções intrincadas, é ele em pessoa que as há-de revelar ajudando os alunos a sair de apuros! Fazer de outro modo é andar às escuras e deixar que os outros baqueiem para sempre! Que pena eu tenho da minha adolescência e primeira juventude, passada ingloriamente a decorar palavras e regras sem fim! A gramática aplica-se ao texto e vai surgindo com o bom alerta do professor!
Para nada serve decorar, alguma vez, listas de termos! É trabalho vão, perigoso, insensato.

Lisboa - Belém // 19-10-1984
O “ Burro”em Latim!
O termo “burro”, ninguém o ignora, é um auxiliar, que poupa diligências e horas a perder, na versão do Latim para o nosso idioma ou outro qualquer. Trata-se, pois, de versão adequada, que a gente consulta, para ir mais depressa e livrar-se de apuros. O designativo não parece estranho, uma vez que o animal, assim indicado, é na verdade, um belo auxiliar!
Chegados a este ponto, surge a pergunta: será útil e prático usar o “burro“? Haverá, efectivamente, necessidade, imprescindível até, de recorrer a ele? Quem pode utilizá-lo? De que maneira há-de ele servir? As respostas seguintes a estas perguntas constituem matéria para o meu Diário. 1. Ninguém haverá que discorde, neste caso. Tudo o que auxilia é útil e prático. Não poupa ele tempo, esforço demasiado, sérios desaires e maus bocados? Não evita complexos e traumas perigosos? 2. Também respondo afirmativamente. O tempo é dinheiro, como dizem os Ingleses. Ora, em nossa época, não pode esbanjar-se, pois a vida constrange e puxa por nós! Há imensos problemas a que temos de olhar e dar solução! Esgrimir no ar, sem medida nem acerto, é coisa vergonhosa, inútil e vã. 3. Professores e alunos.
Se o Mestre precisa (é isso incontestável), quanto mais os alunos, que não têm bases e ensaiam talvez os primeiros passos! 4. O meio de utilizá-lo é que pode merecer cuidado especial. Cabe ao professor indicar a maneira, colaborando activo no progresso dos alunos. Havendo pedagogo, vai ele desempenhar a delicada função. Caso contrário, faz o professor as vezes dele.
Nunca a tradução, decorada e guardada! Interessa pouco tal artifício! Não tem valor! Conhecer a fundo o nexo ideológico e bem assim a construção da frase, aplicada no texto!

Lisboa - Belém \\ 20-10-1984
A Língua Latina e o nosso tempo.
De modo nenhum sou contra o Latim, por motivos óbvios. Alguns deles, se eu bem me lembro, já foram expostos, em Diários passados. Se mais não houvesse, bastaria o parentesco, existente entre ele e a Língua portuguesa. Pela vida fora, tem-me dado achegas, bastante valiosas, na busca porfiosa de vários significados, na origem das palavras e sua evolução bem como na grafia. Até aqui, tudo está certo e não sofre, ao que julgo, contestação alguma. O reverso da medalha avulta mais ao presente, que no tempo de outrora. Designaram esta idade por século das pressas e velocidades.
Exacto ou não, quero eu dizer, com mais ou menos rigor, pouco há-de interessar. Toda a gente convém, sem tergiversar em que é, na verdade, um tempo de corridas. Faz-se tudo a correr sem que fique algum ensejo, para ir dedicar-se a outras coisas! Não sobeja tempo! É uma azáfama constante, em que o homem se consome!
Vizinhos embora, é como se não fossem! Habitam no mesmo prédio? Que tem isso, afinal?! Morre alguém, dentro dele?! Ignoram o facto os outros moradores! Não sobeja tempo, que às vezes nem chega!
Por estas razões, é conta indicado o ensino do Latim! Ele absorve imenso tempo! Não me abono, com certeza, de altos conhecimentos, no ramo em questão, mas sei um bocado! Apesar de tudo, levo imenso tempo, se quiser traduzir umas linhas de prosa. E se for verso?! É preciso adivinhar. Palavras subentendidas, construções especiais, regras e contra-regras, excepções aos montes e o próprio facto de ser, realmente, uma Língua sintéctica. Não se trata, pois, de um idioma corrente, para a nossa época! Só os filólogos e os gramáticos; os estudiosos e poliglotas! Não se enquadra, ao que julgo, no espírito do tempo nem tão pouco nas exigências dos nossos dias

Lisboa - Belém // 21-10-1984
Valentona!
Ocorreu o facto, a 14 deste mês. Não fui, verdade seja, testemunha ocular, mas foi relatado por alguém conhecido. Como é surpreendente, o caso inadmissível, vou aqui deixá-lo, para ficar exarado como triste memória. Era no eléctrico. Cada um no seu lugar, quer sentado, quer em pé, ruminava a fundo problemas inadiáveis, que a vida apresenta. O tempo de hoje não é de brincar, ou viver sem cuidados!
Por esta razão, as pessoas não se expandem, avultando no rosto vestígios profundos de enorme perturbação. Neste deslizar, em que a cisma se areja, mas não se desaloja, é motivo de espanto qualquer pormenor, que venha destoar. Sendo coisa grave, então o facto é mais do que sério. O que vou referir, não devia ocorrer, pois a causa suficiente não estava de harmonia.
Passava o revisor, ao longo da carruagem olhando e inquirindo. Era todo cuidado, não fosse escapar algum dos utentes, sem pagar o bilhete! Nisto, abeira-se ele duma cabo-verdiana, tocando-lhe no ombro e dizendo, ao mesmo tempo: “O bilhete, por favor!”
Como raio infando que fúrias celestes arremessassem do alto, larga a sujeita a morder-lhe no braço, com modos ferinos, provocando feridas, em vários lugares. Ante o despropósito, abeira-se um polícia, com a mira certa de repor a ordem. Então, a sujeita larga o primeiro e ataca o segundo, mordendo-o no corpo e originando sangue!
Resultado? Foram ambos eles para o Hospital Este, o facto doloroso, que é deveras lamentável! Parece incrível, mas é verdade! Tais elementos devem ser banidos! Entre gentes, não pode haver feras! Estrangeiros, sejam eles quais forem, hão-de ser correctos, gentis, respeitadores e bastante cordiais. Sejam brancos ou outros!
Fora da nossa terra, ficamos dependentes e só nos aceitam, se formos úteis e agradáveis a toda a comunidade.

Lisboa - Belém \\ 22-10-1984
Uma Azeitona
Era por alturas de 1933. Nessa data, a 11 de Outubro, dava eu entrada no Seminário Menor, sito no Fundão, uma fábrica antiga, adaptada sem gosto, às nossas lidas. Casa sombria e quase desamada, pela situação e falta de conforto, foi abandonada, ao surgir, mais abaixo, já rente à vila, o novo edifício, noutras condições. Entretanto, não é disto que eu desejo falar, mas da merenda, aquela refeição, que precedia o jantar, duas horas e meia.
A parca merenda, a que vou referir-me, constava de pão e algumas azeitonas: nem mais de 6 nem menos de 3, havendo água também, para acompanhar. Veio isto, a propósito dum facto, ocorrido em Lisboa, a semana passada. O jovem Inácio, empregado, na igreja, havia dado entrada numa Casa de Pasto, a fim de almoçar. Uma vez no interior, deu-se a observar o que estava sucedendo. Notou ele sem demora, que muita gente se coibia ali, no tocante aos jantares.
Um prato de comida – 230$00. Faziam-se cálculos e optava-se logo por uma sande e torresmo! Alguns pediam polvo: eram abastados! No meio de tudo, chegam dois casais, que olham tristemente para as mesas ocupadas, onde vêem bons pratos, a que não podem chegar! Parecia feitiço o alimento dos outros! Entretanto, uma das mulheres abeira-se da mesa, dizendo para alguém, que ali se encontrava: “deixem-me tirar ao menos, uma pobre azeitona! É o meu almoço!”
Bem pior ainda que no meu tempo, lá no Fundão!

Lisboa - Belém // 23-10-1984
O que levo de Lisboa
Em tempos idos, servia-me das férias, para vir até aqui, a fim de espairecer. Por via de regra, estava pouco tempo: geralmente, 8 dias; por vezes, 15; raramente 1 mês! Por esta razão, apreciava o lugar e o que nele se encontrava. Como por outro lado, nunca me integrava neste viver, ficava-lhe estranho, motivo pelo qual era grato voltar, na próxima ocasião.
Agora, porém, as coisas são outras, uma vez que me integrei nesta vida agitada e sempre corrida, sem tempo nem vontade, para fazer outra coisa! Estou saturado! O sonho que nutri vai perdendo cor! É como a tinta que, a poder de tempo, se vai atenuando, até dissipar-se e ficar sem jeito! De facto, Lisboa não serve aos meus fins! Era repouso o que eu procurava, nos últimos anos! Paz e sossego!
Afinal, que tenho encontrado?! Apenas bulício; encontrões violentos; correrias loucas; atropelos em barda; incompreensão e péssimo exemplo! É mortificante! Aquilo que é bom (muito há-de haver) não se torna patente, ao menos para mim! O inverso e oposto que sempre molesta, afecta e mal dispõe é que sempre avulta, influi, torturando e harto amesquinha!
Como fazer?! É um caso difícil! Só fugir, talvez! Mas fugir para onde?! Para dentro de mim! Alhear-me de tudo, privar-me de contactos! Fugir da sociedade! Tantas vezes, aqueles que nos cercam (nem todos) é que são os primeiros a tecer-nos o laço. Não foco agora as pessoas de família; estão fora da regra! São elementos com grada posição, que deviam ser humanos, inteligentes, compreensivos, generosos e mais abertos! Mas não! Só egoísmo, inveja, atropelos!
Melhor será isolar-me e viver à-parte! Vou então pensar neste caso delicado, para dar-lhe solução! O Céu me ajude! Isso me basta, para triunfar e depois ser feliz.

Lisboa - Belém // 25-10-1984
Seria Pesadelo?
Se não foi real, bem o parecia! Esta noite, que horrível pensar e falho dormir! Fosse apenas fantasia, tudo se evolava, ao romper da aurora! Mas eu, agora, ando algo virado para o pessimismo! São os anos?! Os grandes entalões, que me feriram o corpo e destroçaram a própria alma?! Os enormes trabalhos que já suportei e as grandes tarefas, que levei a cabo?! Tudo seria e mais ainda! Pois esta noite foi um degredo! Que horas amargas houve de curtir! Isto, evidentemente, já foi sequela de turbação anterior! Entretanto, de envolta com o sono, veio outro dado, que me fez tremer!
Gira a engrenagem à volta de minha irmã! A radiografia acusa 4 pedras de tamanho enorme, na vesícula biliar! Ora, em face do caso, disse o galeno: ”A senhora, afinal, tem de ser operada, sem protelar! Não queira alegar, seja o que for ou enveredar por outro caminho! Depois, não se queixe! Está sujeita a um cancro!”
Isto ouvi eu, da boca de minha irmã, a semana passada. Fiquei apreensivo, como é natural, mas fui-me aguentando. O sono da noite apresentou certo o que pode estar só na esfera do possível. Assim o julgo eu. Seria para mim um golpe tremendo e um caso de aflição como não suponho nem quero imaginar! Deus me valha já, que só Ele pode. Que nos livre de afrontas, pois já sofremos desgostos enormes, em terra africana, sem deixarmos nunca de esgotar o cálix. Este não cessou, embora nos achemos, em solo pátrio.
Se houvermos de escorrer as amargas fezes, que o Céu amoroso nos dê coragem, paz e conforto. Sei muito bem que Deus é Pai e não carrasco! É esta a minha fé e aliciante esperança.

Lisboa - Belém // 29-10-1984
Um bispo diferente
Já o conhecia, há 27 anos. Efectivamente, em 1957, dava eu entrada, na vila de Manteigas, onde leccionei, durante 15 anos. Nessa altura, era ele, ao que julgo, finalista de Curso. Jovem prendado, tornara-se desde logo objecto de surpresa e grande apreço! Em ordem a mim, ocorreu exactamente como deixo escrito.
O padre Albino, que depois cursou Letras, era aquela pessoa, que chamava as atenções, não por espavento ou prurido insuportável, de fazer figura! Sim, cativante, pela sua modéstia, amor ao próximo e desejo enorme de ser prestável. Os seus predicados não ficaram nas trevas. Uma vez descobertos, foram logo aproveitados, e postos a render. O Seminário de Almada e a Basílica da Estrela, onde foi prior, ofereceram-lhe ensejo, para aplicar os talentos.
O seu mérito, porém, não iria deixá-lo por mero operário, embora diligente, afável e zeloso. Exigia muito mais: cargo de chefia, na hierarquia da Igreja. Com muita alegria de todos os seus amigos e sem algo de surpresa, correu a notícia da sua promoção: iam na verdade sagrá-lo bispo. Assim aconteceu. É agora o D. Albino, aquele que não mudou, pelo novo cargo, em que foi investido.
No jantar de sábado, em que ele tomou parte, verifiquei-o uma vez mais: sempre modesto, irradiando alegria! Sempre familiar, colocando-se a nível para o que tem de baixar! A simplicidade e a pureza de vida, o desejo de servir e a bondade extrema que lhe adornam a alma, fazem dele um bom amigo, que logo se procura; um bispo modelar, que pronto se ama; um apóstolo zeloso, cuja presença logo nos encanta e cuja ausência nos dói sumamente.
Que Deus o proteja e cumule de bênçãos, fecundando sempre o seu apostolado, a fim de que triunfe e seja feliz. Desta maneira, também eu, seu amigo, ficarei ditoso.

Lisboa - Belém // 31-10-1984
Torpedos
Palavra terrível, que pronto alvoroça, causando mal-estar! Não sei, a rigor, que elementos entram, na constituição, para gerar calafrios e disporem tão mal! Fica sempre a noção duma coisa medonha, que apavora e afugenta. Será pelo volume?! Pelo seu conteúdo?! Pelos estragos enormes, que eles originam?! Pelo negro horror, que isso desperta?! De tudo um pouco, se não mais ainda!
Nesta hora precisa, vem à memória um facto notável da última Guerra. Ocorreu no Japão, com enorme surpresa do mundo inteiro! Quem não sabe, por ventura, o que então se passou com os horrorosos “torpedos humanos?!” Ao que dizem, era usual, entre o povo nipónico! Corriam vozes de alarme, segundo as quais, um barco inimigo transportava soldados, material de guerra ou ainda comestíveis?! Aparecia alguém, oferecendo-se logo para morrer. O voluntário acompanhava prestes o explosivo, de enorme potência, dirigindo-o breve, para o alvo inimigo.
Sabia, decerto que voava para a morte, entretanto, nada o coibia de levar por diante o seu objectivo. Motivos para isso?! Decerto os havia, muito embora eu os não saiba, com todo o rigor. Suponho, desde já, que seria talvez o amor da pátria ou por ventura uma causa nobre de ordem religiosa. Partidários, talvez, da “reincarnação”?! A pessoa morre, seu espírito, porém, mediante acções, valiosas e nobres, vai alcançando a purificação e subindo na escala.
Passaria assim, de um animal inferior para outro mais nobre, até conseguir a purificação. Seja por que for, o caso deu-se. Por que é que me lembraram estes factos horrendos?! Nada há sem causa.
Esta manhã, encontrando-me na ‘bicha’, para colher o eléctrico, apinhado de gente, passou rente a mim um pequeno ‘torpedo’, que me deixou num pronto, quase estarrecido!

Lisboa - Belém // 1-11-1984
Continuação
Antes do caso, olhei para dentro, verificando logo movimento desusado. Uns sentados, outros de pé, comprimiam-se todos e bamboleavam, segundo o ritmo do grosso veículo. Nestas circunstâncias, fico indeciso e entro a cismar. Transportava eu garrafas vazias, em número de 8. Era bastante! O braço repontava, tentando libertar-se, o mais breve possível. Quem olhasse para mim iria ter pena, havendo no peito um coração generoso. Em tais apuros, interrogo os meus botões: consigo eu lugar, seja ainda um cantinho?! Mas, se a ‘bicha’ é tão grande, como vou instalar-me?! Para mais, carregado assim!
Em auto-carros nem sequer pensar! De facto, ir ali de pé, requer braços livres, para nos agarrarmos! Melhor seria, pois, recorrer aos eléctricos! Entretanto, urgia o tempo! Assim apinhado o moroso veículo! O meu braço a doer, refilando, sem rebuço!
Bom! Lá ia avançando, rumo à entrada, com lentidão! Passaria, talvez, a meio do transporte, angustiado e pensativo, quando uma “embalagem”, feita de imundície, voa do interior, pela janela fora, deslocando-se prestes, em frente da minha testa! Não posso descrever o que então me ocorreu! Momento assaz trágico! Não era explosiva a matéria em causa?! Bem sei que não, mas tenhamos presente o que o Poeta escreveu, na Epopeia imortal: “… maior o dano que o perigo!”
Foi isto exactamente! Mínimo perigo, mas enorme dano! Imagine-se bem o que seria, a rigor, vir aquele arremesso de encontro à face! Atingir-me nos olhos ou entrar-me pela boca! Nem quero pensar! Os resíduos mal cheirosos, em decomposição, acumulados em montões, nas fossas nasais ou ainda nos brônquios, saíram pela boca, envoltos em escarros, saliva e detritos! Que pavor! Nem quero reviver o momento angustioso!

Lisboa - Belém // 2-11-1984
Dia de Finados
Miseremini mei, miseremini mei, saltem vos, amici mei. Tende compaixão de mim, ao menos vos, que sois meus amigos! É o dia da saudade! Aqueles que partiram deixaram só vácuo, em peitos amigos e esta mágoa profunda nem o tempo a destrói! Atenua-se um pouco em seu pormenor, esbatem-se ao de leve as cores e os tons, indefinem-se um tanto as linhas gerais, mas fica a raiz, esse forte aguilhão, que espicaça alma e sempre a tortura.
Este fómite ardente, que logo se vinca, robustece avulta, em contacto directo com tantos problemas, nada existe aí que o possa eliminar! Hoje como sempre aviva-se na alma a dor profunda e a consternação! Lembram-me dois entes, a quem devo a existência (depois de Deus): meu pai e minha mãe! Levou-os a morte, impiedosa e crua. Aquele esteio, em Dezembro, 18, em 1952, há 32 anos; esta adorável, em Novembro, 12, 1964, há só 20 anos!
Afigura-se isto longa eternidade. Quem me dera vê-los! Bem sei que, neste mundo, já não é possível, mas espero em Deus que no outro há-de ser! Eles eram tão bons, amigos e devotos, que o Supremo Juiz há-de tê-los consigo! Que faziam eles que merecesse castigo?! As faltas habituais, a que ninguém escapa eram balançadas pela honestidade, doação e sacrifício, a viva piedade que sempre mostraram.
Por tudo isto, a ideia do inferno está posta de lado. Quanto ao Purgatório, não me pronuncio, de maneira categórica; Deus é quem sabe, mas até me parece que já vivem no Céu! Se por ventura estiverem lá, vou hoje, como sempre, orar ao Senhor pelo eterno descanso de suas almas queridas.
Paizinho do Céu, que nos criaste e por nós sofreste os horrores do Calvário, purificai de todo, no vosso sangue precioso, as almas tão queridas que tanto Vos amaram e a mim também. Ofereci a Santa Missa, pela Vossa glória e pelo eterno descanso de quem me deste, para encanto na vida, protecção e amor!

Lisboa - Belém // 4-11-1984
O meu Lar
Que saudade me punge, no íntimo da alma! Deixei, há tanto já, esse lar tão querido! Em 1933, (há 51 anos), partia um jovem, a 11 de Outubro, para a vila do Fundão. Iniciava os estudos, no Seminário, que o fizera arrancar ao remanso tão querido! Foi este o primeiro golpe, vibrado assim a fundo, no meu peito juvenil! Que pungência amargosa! Que dias e horas tão cheias de solidão! Nem quero lembrar!
O silvar do comboio, que passava lá perto, era a rigor, como dobre a finados! Abria-me no seio, a chaga dolorosa, que me estava aguilhoando tão profundamente! Aquele apito agudo ou coisa semelhante, baixava-me ao peito, qual veneno letal! Figurava a morte, instalada cruelmente, no peito agonizante!
Tudo isto, afinal, porque o lar adorado, onde fora tão feliz, já ficava distante! Quatro-olhos cintilantes a chispar amorosos, irradiando centelhas, que o tempo inflamava! Dois belos corações, vibrando a uníssono e vivendo, dia a dia, meus graves problemas! Duas almas eleitas, que o Céu me concedera, experimentando, no íntimo peito, orgulho e regozijo, pelo filho estremecido! Duas faces amorosas, que beijava ternamente, assim extravazando o que sentia cá dentro!
Era esta, de facto, a faceta moral e a mais delicada, amorosa e bela do lar tão amado! A outra, porém, a parte material, era pobre e humilde, pequena, desconfortável! Apesar de tudo, quem me dera ainda junto desses entes, que tanto adorei!
Ficava na Portela, à fonte do Cão, Travessa da Oliveira. Subindo do Terreiro, achava-se, à esquerda, esse lar inolvidável. Uma casa avelhada, antiga e denegrida, onde os grandes temporais haviam feito danos! Mas era esse o meu lar, que jamais esquecerei e que tantas horas belas proporcionou, generoso, à minha alma saudosa!
Lar de fascínio, volta a encontrar-me, para inundares meu peito, de aconchego e paz.

Lisboa - Belém // 5-11-1984
Rumo Novo
É preocupante a mudança de vida, na existência de alguém, de modo particular, se a nova situação impõe sacrifícios, exigindo renúncia. É o caso do Isaías, meu sobrinho mais novo, que hoje inicia a vida militar. Partiu ontem já, por alta madrugada, cheio de apreensão e entregue a pensamentos, que bastante o deprimem. Escolheu, é certo, o ramo de treino, que mais lhe agradava: o paraquedismo. Como tem aspirações e é caprichoso, iam-se-lhe os olhos pela tropa lusa, especializada, na força aérea. O que ele passou, ao longo de muitos meses!
Bom! Deixados os comandos, tropa de escol, nas Forças Nacionais, postergando também os Fuzileiros, tropa de classe, na Marinha Portuguesa, optou decidido pelos Pára-quedistas. Entretanto, o maior problema ainda está por vir. Nem ele próprio, talvez, se tenha apercebido! Contudo, vai ser realidade!
Foi sempre amimado: é ele, o mais novo dos filhos do casal. Esta circunstância, aliada a outras, fazem-no, às vezes, algo caprichoso e um tanto egoísta. O seu prazer é mandar! Ter alguém que o sirva, sem originar quaisquer dificuldades ou mal-estar! Claro! Em casa dos pais, fez-se indolente, por nada lhe exigirem!
Fora sempre atendido, em suas pretensões. Como teve em criança perigosa doença, o receio de o perderem originou cedências, que ele explorou, em seu benefício. Numa palavra, tornou-se exigente, um pouco agressivo e autoritário, embora por natureza, ele seja dócil e capaz de entendimento.
Todos estes factores criarão dificuldades, na vida que o espera. Entretanto, como é inteligente e foi assaz calcado, no 25 de Abril, que o sujeitou logo a muitas carências, tenho para mim que vai adaptar-se. A necessidade cria o órgão preciso, como já diziam os evolucionistas. Veremos, pois, como diz o cego! Que Deus o ajude, para ele singrar!

Lisboa - Belém // 6-11-1984
Faz hoje 4 anos. Ocorreu exactamente a chegada a Lisboa, de minha irmã e família. De facto, a 6 de Novembro, davam eles entrada na linda capital! Chamara-os eu, julgando facilitar o que eles procuravam. Viviam na província, onde tudo escasseava. Efectivamente, sendo retornados, que a sorte fadara, para um destino, deveras lastimoso, regressaram de Angola, de mãos vazias.
Uma vez no país, acharam-se por isso ao desamparo, notando à volta só desinteresse, abandono e mal-querer! À maneira de estrangeiros, na sua própria terra! Que grande tristeza! Que lástima profunda e sem igual! Bom! Isto, afinal de contas, não era ainda tudo! Sem casa nem trastes, habitavam, sim, uma antiga vivenda, onde as ratazanas faziam correrias e partidas sem limite. O vento e a chuva penetravam a capricho, sem dar possibilidades, que serenassem o peito!
Autêntica desgraça! Quem vivera na abundância experimentava agora uma quase penúria! Havia o campo e bem assim as leiras, para serem remexidas, dando-lhes ensejo de auferir o necessário, ao fim de alguns meses. Saúde, porém, é que não existia. Doença moral e doença física! Em tais apuros, houve eu por bem retirá-los dali, proporcionando trabalho, que desse o mínimo, para subsistirem. Vieram, pois, trazendo consigo a luz da esperança.
Aqui, teriam os filhos maiores saídas, em questão de estudos e casos de emprego. A vida, porém nem sempre dá o que lhe exigimos. Mercê de factores que actuam sinistros, degeneram as coisas, tornando-se adversas. Incompreensão e cinismo de muitos; falta de amparo e largueza de vistas; mesquinhez de sobejo e ambição; inveja a rodos e hipocrisia puseram seus planos revirados ao contrário!
Valerá bem a pena comemorar a efeméride?!

Lisboa - Belém // 11-11-1984
O Verão do S. Martinho
É tradicional o risonho Verão, que se encaixa, à maravilha, no sóbrio Outono, agora carregado. Digo ‘sombrio’, porque na verdade, foi tão nublado o céu de Novembro, que parecia Inverno. Chuva sempre a cântaros, vento ciclónico, originando estragos, em vários lugares! Permanência em casa! Quando fora dali, recurso pronto aos guarda-chuvas, bem como impermeáveis e bons agasalhos! Realmente, figurava Dezembro ou mesmo Janeiro.
As nossas gentes mostravam-se indispostas, ansiando por bom tempo e dias melhores! A lama dos caminhos e também a humidade faziam enervar os mais destemidos. Bom! “Contra os céus não valem mãos!” diz o poeta. Aguentar pacientes e mostrar alegria!
Desta serração, luzia uma esperança: este ano mais ténue, devido ao tempo, que era indigesto! Haverá interregno, para tal situação?! Os anos passados havia certeza, no tocante ao ‘verão’, agora desejado. O verão do S. Martinho! Que bom e agradável, se tivéssemos a dita de vê-lo chegar!
Pois veio certamente! Desde ontem, já pela manhã, que tudo é outro! O benéfico Sol espancou as nuvens, que deixaram passar os raios luminosos, alegria e consolo dos pobres mortais! O céu mudou a carranca em formoso sorriso! Todo ele prata viva, deliciando olhar, infundindo segurança! Era, realmente o verão de S. Martinho, que Deus enviava e que hoje continua, sem chuva nem vento.
Esta viragem, que todos recebemos, com imensa alegria, é fruto do Céu, recompensa do bem que a outrem fazemos. S. Martinho, em dia de temporal, dividiu a capa, oferecendo a um pobre a outra metade, para se agasalhar. Esta bela acção foi logo premiada: a chuva e o vento cessaram prontamente, surgindo no alto o benéfico Sol. Desde então, repete-se o milagre, para nós imitarmos a prática do bem, ajudando os pobres, por amor de Deus.

Lisboa - Belém // 12-11-1984
Faz hoje 20 anos! Foi, na verdade, a 12 de Novembro de 1964. A esta hora, 7 da manhã, ainda vivia a mãe adorada, que eu estremecia. Tê-la comigo era um prazer, embora aguado pela funda agonia, criada em mim pelo seu martírio. Um tumor maligno, alojado no estômago, iria vitimá-la, ao fim de 4 meses, jazendo no leito, abismada em dor. Mas ela, por sorte, com os olhos da fé, penetrava a fundo, no valor do sofrimento, oferecendo-o a Deus, pelos seus pecados e pela felicidade, ventura e paz daqueles que amava – os filhos tão queridos!
Esta efeméride, que hoje ocorre, enche de mágoa o meu coração, infundindo nele imensa tristeza. Perdi, com certeza, o mais belo tesouro, que podia arranjar e que Deus me ofertara. Depois disso, houve mais perdas, algumas expressivas, em intensidade, mas a primeira, pelo significado e grande prostração, que operou em mim, fica a outro nível. Foi, sem qualquer dúvida, a mãe sacrificada, generosa, indulgente!
Renunciando a si, entregou-se jubilosa, aos entes amados, que lhe enchiam a vida. Mesmo já doente, era um amparo, uma âncora firme, diria até barreira ou anteparo, aonde iam quebrar-se ou perder o impulso os contratempos e azares da vida. Fiquei pobrezinho, quando partiu! Chamava-a o Céu, aos 79 anos, para dar-lhe o prémio de tanta firmeza, assiduidade e grande constância no serviço de Deus e do semelhante.
É isto, realmente, que me traz serenidade! Lembrar-me sempre de que ela é ditosa e se encontra no Céu, por que tanto lutou, nos dias conturbados da vida mortal, é grande alívio, firme suporte!
Senhor, Pai do Céu, já tendes aí aquela que me gerou e tanto estremeceu? Pelas Vossas santas chagas, levai-a para Vós, que sois a única fonte de paz e amor!

Lisboa - Belém // 13-11-1984
Regressou o Isaías à Base de Tancos, em 11-11. Esta localidade é agora o seu calvário. Aí por fora, é como a designam. A este jovem chamamos Quim, por ser mais breve e ficar no princípio do nome baptismal. Coitado! Inspirou-me dó! Vem abatido, algo amarelo e apreensivo. Deve ter sido um choque tremendo! Céu e inferno?!
No lar, havia atenções, provas de estima, amor e carinho. Em Tancos, onde faz a recruta, para a Força Aérea, tudo gira ao invés! É como peça de grande mecanismo, onde tem de integrar-se, queira ele ou não! Goste ou não goste! As palavras que ouvem são imperiosas; os graves castigos chovem decerto à mínima distracção; as marcas do sofrimento vêm-lhe estampadas, ao longo do corpo.
Nas costas, há feridas enormes, que vêm a sangrar: efeito da mochila, com 30 quilos; nos pés, com botas pesadas e longos percursos, arrancou-se a pele, deixando-os para logo sem protecção! Não tem momento livre: é tudo preenchido, sem qualquer furo! As ordens superiores, por serem estritas, hão-de ser cumpridas, com todo o rigor! Ele, o menino, a quem tudo perdoavam, suportando caprichos e todos os defeitos, nem sequer tem ensejo de mostrar o que deseja!
Custou-me sem dúvida vê-lo abatido! Mas que fazer?! A vida é assim! Pobre Isaías! Quem tinha a fundo a paixão do jogo (futebol), não perdendo ocasião, que o levasse a presenciá-lo ou ouvir falar dele! Agora, ao invés, nem lhe bole o coração, em ordem ao facto!
Passou em Belém o fim-de-semana, inteiramente alheado de quanto o cercava! Ignorou, quem pensaria, a própria televisão e quanto lhe respeita! Como pode ser isso?! O aparelho fechado e ele ao pé, estudando regras e preceitos novos, que tem de cumprir!
Como sinto pena do nosso Isaías! Pode ser, no entanto, que muito lhe sirva para a luta da vida, que o está esperando!

Lisboa - Belém // 18-11-1984
“Vinte e três mil escudos!”
Fossem eles devidos ao totobola ou então à lotaria! Viessem de qualquer fonte que não importava! Tudo o que vem à rede é peixe decerto, como diz há muito o saber popular! De grão a grão enche a galinha o papo! Muitos poucos fazem muito! Há uma série de anexins, que vão dar ao mesmo. Tratando-se, alguma vez de receber um presente, a coisa é bem aceite. Já o mesmo não sucede, notando-se o contrário!
Meter dentro é sempre mais fácil do que atirar para fora. Veio isto agora, a propósito dum caso, por mim observado, na Caixa Geral de Depósitos. Uma senhora, de aspecto amortecido, e rosto angustiado, afastara-se um tanto, a fim de inteirar-se da última operação, que acabava de fazer. Não era grande soma, no entanto ela persistia: contava uma vez e tornava a contar!
Isto deu nas vistas, pois havia muita gente a abeirar-se do balcão. O tempo urgia! Há sempre, claro, deveres a cumprir, faltando a paciência, em tais cicunstâncias. Tendo embora pressa, condoí-me da senhora, que não findava jamais a contagem das notas. Enganava-se amiúde, voltando outra vez, ao ponto inicial! Eram notas de 1000$00.
Seria até fácil contar o dinheiro, mas estava nervosa e muito angustiada! Por que seria?! Angustiada, arreda os olhos, da “massa” e logo desabafa, com funda tristeza: “23000$00, por um exame ao cérebro?!”As palavras proferidas embargavam-lhe a voz, mal se distinguindo, cá no exterior. A senhora, de facto, estava oprimida!
Por que seria?! Sei eu lá bem se o dinheiro em causa seria fruto de suor e garantia segura de sustento para ela e seus filhos também?! Deus é quem sabe!
Dá imensa pena que a nossa Medicina fique inacessível a bolsas modestas! Que é que se tem feito, neste sentido?! Chegará o que temos?!

Lisboa - Belém // 20-11-1984
Quando habitarei, na minha própria casa?!
Esta pergunta baila no meu espírito e vem ao de cima, cada hora que passa. É que eu, na verdade, fui muito castigado, ao longo da vida. Ainda na adolescência, de que guardo no peito funda saudade, tinha realmente a casa paterna. Construção remota, feita na aldeia, nem era das piores. Entretanto, deixava a desejar! Não tinha conforto. Faltava a luz e também o calor. Para nossa desventura, as fachadas livres eram Norte e Poente.
As melhores delas estavam tapadas por outras casas, a Nascente, a velha moradia do tio João; a Sul, ficava igualmente a da tia Conceição.
E quando chovia? Era então o cabo dos trabalhos! Minha mãe, coitada, levava para o sótão vasilhas em barda: caldeiros e bacias, panelas e caçoulos; caldeiras e caçoulas e todos os ferrados. Originava-se, depois, estranha sinfonia! As telhas partidas ou ainda arredadas pela fúria do vento deixavam penetrar a água das chuvas. Era isto assim, na vetusta aldeia de Vide-Entre-Vinhas. Enfermava o telhado de grave defeito: não ter, de facto, inclinação bastante, para a água correr. Visto do “Outeirinho”, parecia quase chato.
Bom! Foi preciso aguentar! Muitíssimo pior havia de ser ainda, passados vários anos! Fora do lar, nunca tive casa própria, até ao mês de Fevereiro de 1984, ano corrente!
Sucedeu, algumas vezes, chover-me no quarto e na própria cama! Belo exercício, para depois da morte! Deste modo, não iria estranhar humidade e aridez, na campa fria! Aconteceu em Manteigas, no velho Hospital, já em demolição! Pois mais tarde, na floresta africana, junto à Namíbia?! Era o grande êxodo! Não tinha eu a casa, debaixo de espinheiras, chovendo na roupa que me cobria o corpo?! Assim foi a vida, no triste passado!

Lisboa - Belém // 21-11-1984
Continuação
Chegado que sou aos 67 anos, a fazer em Fevereiro, 1985, no dia 19, é já bem visto habitar uma casinha, que seja decente!
Não deixa ter paz nem gera confiança viver uma pessoa, em casa alheia! Nunca pode, realmente, sentir-se à-vontade, embora se trate de casa amiga. Só o cuidado, que jamais nos larga, de podermos ser pesados, aborrecendo as pessoas do nosso convívio ou fazendo alguma coisa que possa destoar! “Casa minha, casa minha - dizia o velho Enes - merda pró rei e mais prá rainha”. E era uma casa que… valha-nos Deus! Toda avelhada, negra e lurada! Mesmo assim estava contente, no seio dela, o pobre velhote!
Uma vez em Portugal, após a aventura por Angola e Namíbia, já fui acolhido em 4 habitações. Não digo certamente que fossem ruins! Não se trata disso, excluindo a derradeira! Usámos várias vezes o guarda-chuva, para não encharcarmos o nosso corpo, dentro de casa! Agora, porém, já não sucede, que levou telhado novo! Ao chegar de Joanesburgo, fiquei no Areeiro em casa dos primos: Aurora e José. Foram só três semanas! Para incomodar, seria, julgo eu tempo de sobejo! Entretanto, foram sempre amáveis. Não posso esquecê-lo!
Em seguida, por oferta voluntária, aceitei morar, na Silva Carvalho em casa de alguém, que habitava um terceiro andar. Foram 70 dias. A princípio, tudo corria bem, mas em seguida, foi o cabo dos trabalhos! Coube-me depois o acolhedor presbitério do prior de Alcântara, que o bom padre Alfredo pôs à minha disposição. Lá estive mais de um ano, sentindo-me bem. Era na rua 22 de Maio. Como trampolim para a casa da Amadora, encontro-me em Belém, na rua do Embaixador. No próximo ano, arrancarei de todo para o 3º Esquerdo, rua 27 de Junho, porta número 6. Se Deus quiser, ali acabarei a minha vida mortal, em casa modesta, mas confortável.

Lisboa - Belém // 22-11-1984
“Num gosto daquele!”
Seria agradável correr-nos a vida a bel-prazer! Todos procuramos o mesmo objectivo que, afinal, é esse! Como resultado vem, geralmente, o que menos se espera! Quando já idosos, juntamos o útil ao que seja agradável e, não podendo atingir o que ambicionamos, detemo-nos aquém, isto é, banimos o agradável. Isto, porém, é fruto maduro da longa experiência, adquirida, tantas vezes, à custa de maus bocados, entalões e amargura.
Lá diz o anexim: “A experiência é mestra da vida!”. Veio isto a propósito de uma frase espontânea que hoje mesmo ouvi, na paragem do eléctrico, às 8 menos 5. Era ali abaixo, ao Museu dos Coches. As gentes apinhavam-se, olhando para as nuvens e fixando amiúde os relógios de pulso. De vez em quando, um olhar furtivo para a banda dos Jerónimos, a fim de notarem o assomar do transporte. Primeiramente, surgiu o 16; em seguida, o 15.
Entretanto, como vinham repletos, permanecíamos lá, na vasta plataforma, cheios de ansiedade.
O tempo urgia. Tarefas dum lado; cuidados do outro! Rentinho a mim, penava uma donzela, que era já mãe, sustentando nos braços um miúdo gorducho, dos seus 4 anos, o máximo 5. Este olhava também, e dava opinião, sobre o meio de transporte. A páginas tantas, ensaiava-se a mãe, para entrar num deles, que não vinha distante. Percebeu o petiz as suas diligências para entrar, escarranchado na coxa da senhora.
Foi nesta ocasião que fixei o miúdo, ouvindo a frase, que vem no topo deste Diário: ” Num gosto daquele!” A estas palavras, objecta a senhora: “Era o que faltava! Estarmos à espera do que tu gostasses!”
O miúdo resignou-se, com ar de tristeza e eu fiquei pensando na dureza da vida, a partir da infância!

Lisboa - Belém // 23-11-1984
Quanto mais vivermos mais ainda veremos!
Isto é, realmente o que diz o provérbio. A experiência diária confirma-o bem. Ainda ontem ocorreu uma cena que mo trouxe à lembrança. Os tempos mudaram, por forma radical. Terei sido eu que não acompanhei a marcha do mundo?! Haverei cristalizado, enquanto à minha volta as coisas se alteraram?! Novos conceitos e outras maneiras de encarar a vida?! Voltar de costas a tudo o que passou?!
Efectivamente, coisas se viam, já obsoletas. Outras, porém, são valores preciosos que, segundo julgo, devem conservar-se, até ao fim do mundo. Assim, por exemplo, o amor a Deus e ao nosso próximo; amizade e honradez; a honestidade; o alto espírito de nobre sacrifício; paciência e respeito; acatamento aos pobrezinhos; a gentileza; polidez interior e exterior; a dedicação; o reconhecimento; mil outras ainda, que agora me dispenso de enumerar.
Bom! Após a lista que não foi longa, fixo a atenção no caso de ontem, relativo à carruagem que serve a Amadora. Entrando no veículo, noto prontamente que já está cheio, pelo que muitos utentes se mantêm de pé. Mercê deste facto, conservo-me firme, apoiado num prumo (coluna metálica) logo à entrada. Ombreando comigo, vai outro homem que, pelo aspecto e ar abatido, figurava os 70, já bem contados. Tive pena dele! Os outros não! Logo paredes meias, iam várias jovens. Uma deste grupo tirou-me o lugar. Apanhando-me em pé, rodeou pelas costas, enfiando-se na berma, sem que eu me apercebesse.
Como é doloroso verificar tais factos e sofrer em breve, as graves consequências! A atrevida gaiata, a que eu aludi, terá porventura, os seus 17 ou quando muito, 18! Parece impossível que tal caso se desse! Para onde é que foi a nobre gentileza?! Que é feito agora da bela humanidade?! Que sentimentos denotam certas pessoas?! Parecem feras, em que a inteligência não tem cabimento!
É esta a sociedade que nos envolve e sufoca?! Quem pode aguentá-la?!

Lisboa - Belém // 24-11-1984
Junto da Porta
Às 11 e 30, partia da Amadora a carreira de Algés. Estando na paragem, decidi aproveitá-la, por ignorar o horário da que vai para Belém, a qual então me convinha mais. Lugares vagos, para alguém sentar-se, não havia nenhum. Isto, de facto, acontece amiúde. Entretanto, como não demora excessivamente, aguentam-se as gentes, suportando os balanços.
É preciso paciência, embora as pernas refilem, às vezes e os males da existência acabrunhem os idosos! Por estas razões, não basta a paciência! Mas enfim, a vida é isto, nos tempos de agora! Os novos de hoje (nem todos!) são desumanos, irresponsáveis, bastante grosseiros e até boçais!
Bom! Mantive-me em pé, durante algum tempo, aguçando o olho, a fim de não perder nenhum ensejo que fosse favorável. Nisto, fica vago um assento, rentinho à porta, onde ia realizar-se o episódio triste que passo a contar. Mesmo no corredor, em frente da porta, mantinham-se dois jovens, dos seus 18 anos. Eram altos, lentos na acção e de olhar mortiço. Naquela idade, fez-me impressão a sua atitude! Cansaço da vida? Noitadas a fio?! Vida licenciosa?! Eles é que sabem! Não é isso, realmente, o que agora interessa!
Barrando a porta, a mais de meio, pois eram dois, uma senhora idosa ia tropeçando! Por outro lado, chegou atrasada, correndo assim perigo de ficar detida, não podendo sair! Um senhor de meia-idade, que observou a cena, ali ocorrida, levantou seu protesto em defesa da velhice, falando com aspereza e convidando os jovens a sair da passagem.
Em seguida, mais dois velhotes demandaram a porta, correndo seus riscos e havendo de afastar-se, por causa dos balanços. Agora, pois, novos protestos de outras pessoas Eles, no entanto, mantiveram-se ali, dando em resposta um silêncio total.
É esta, de facto, a bela sociedade que teremos amnhã?! Bons princípios, não haja dúvida!

Lisboa - Belém // 25-11-1984
A Neve caíra!..
Recordo-me bem dos tempos remotos, em que eu, sonhador, estudava na Guarda. Foram 6 anos! Na cidade mais alta do meu Portugal, pude experimentar a sensação da neve, em corpo frio como era o meu. Ganhei logo complexos, em ordem ao frio! Era quase um tormento! Entretanto, como a nossa existência é feita de contrastes, sobrevindo geralmente o que não queremos, em 1945, fui leccionar, durante 5 anos, para o frio Outeiro de S. Miguel, a pequena distância da vetusta cidade.
Eram já 11 anos a sofrer o martírio de viver sepultado em montanhas de gelo! Isto, porém, não havia terminado! Levaram-me os pecados à vila de Manteigas, onde hoje mesmo ainda estaria, se não fosse a má vontade e o rancor dum homem. Pois ali me aguentei, pelo espaço de 15 anos, em clima semelhante ao da própria Guarda! No alto das montanhas, nos vales profundos e no meu coração, havia sempre neve! Bom! Foram ao todo 26 anos! Já conta bastante, na vida humana, atendendo agora a que foi a parte válida que por lá gastei.
É bem metade, se não mais ainda, na existência do homem. A que propósito vem este meu discurso? Se aqui não há neve! É esse o engano! Há dela e abunda! Vi-a hoje, de manhã, na cabeça de alguém! Rumando para Alcântara, demandei o eléctrico. Foi nele precisamente que veio ao de cima o Diário entre mãos! A honrada cabeça do guarda, freios era toda branquinha. Olhando-a tristemente, perguntei aos meus botões:
- Como é possível ir ainda ao serviço um homem desta idade?! Perigoso para ele e também para os utentes! A Segurança não se deixa tocar por casos desta ordem?! Não concebo tal coisa! Ou serei eu de raciocínio lento?!

Lisboa - Belém // 25-11-1094
O Grande Rei
Foi ontem o dia que o mundo cristão lhe quis tributar. Houve festa e regozijo, profunda alegria, júbilo intenso. Bem o merece, pois é o Senhor, que tudo governa, em tudo manda e sempre reina. Os próprios inimigos lhe estão sujeitos, mostrando grandeza em saber esperar e ser paciente. Se Ele quisesse, reduzia-os a nada, como cinza e pó! Bastaria um acto da sua vontade! Entretanto, Jesus Cristo-Rei prefere outros modos, assim dando exemplo às suas criaturas.
Senti-me feliz, por dar contributo para a festa do meu Rei! Quem duvidará de que Ele é Rei e exerce, de facto, a sua realeza?! Não foi o Senhor que tudo criou e conserva na existência?! Não foi Ele, realmente, que pagou por nós, comprando-nos a todos, com o sangue precioso, derramado, no Calvário?! Não fomos nós, por ventura, que há muito O escolhemos por nosso Rei?! Ele exerce a realeza, à maneira simpática de Bom Pastor. Entretanto, no fim dos tempos, assumirá, para logo, o cargo de Juiz! Na verdade, ocorrerá então o grande ajuste de contas.
Ninguém se livrará! Todos presentes, sem qualquer excepção, ouvirão logo, de sua boca, divina a sentença amável ou aterradora, conforme os nossos actos, ao longo desta vida. Lá se encontrarão os próprios devassos, ladrões e assassinos; ali prestarão contas violadores e raptores, caluniadores e assim os bandidos; veremos também lá os que, neste mundo, passaram ignorados, sendo maliciosos; assistirão igualmente abortadores e os próprios drogados; não faltarão os que o mundo louvou e encheu de lisonja; assim também lambões e invejosos, comilões e avarentos.
O grande Rei vai fazer dois grupos: colocará um deles à sua direita; logo o outro, à sua esquerda. A estes dirá: “Ide, malditos, para o fogo eterno” … Aos do outro grupo fará ouvir as seguintes palavras: “Vinde já, benditos de meu Pai, ocupar no Céu o lugar apetecido que estava preparado, desde toda a eternidade…!”

Lisboa - Belém // 27-11-1984
Bela Coincidência
É o fim do caderno e também o final da volta 58, relativa a minha irmã. Nasceu a mana Augusta, em Novembro, 27, de 1926. Eu já tinha, nessa data, 8 anos e 9 meses, pois havia nascido em Fevereiro, 19 de 18. Ao que dizia a nossa mãe, seríamos ao todo 8 irmãozinhos! Entretanto, mercê das condições, em que então vivia o povo, as criancinhas, em Julho e Agosto, morriam quase todas! Era um pavor!
Sem estrada nem Médico, telefone, luz eléctrica, mergulhavam as gentes nas trevas da ignorância e na carência total do que o homem precisa, para viver dignamente. É uma das razões, por que eu detesto, a valer, o regime monárquico (face à 3ª e 4ª dinastia). Esbanjou-se a riqueza, comeram e beberam, administraram mal, deixando a nação prostrada na lama! Quem menos podia é que pagava! Uns a nadar em grandeza, outros rastejando pelo chão lamacento! A nossa República herdou, por fim, esta ignomínia!
Voltando agora ao ponto de partida, levou a morte 5 irmãozinhos, que fazem companhia aos Anjos do Céu. Espero ansioso vê-los um dia. Por este andar, ficámos só três. Falta só o Manuel. É coisa excelente, assim o julgo eu, haver mais irmãos, sendo todos amigos, leais, dedicados.
Infelizmente, acontece, por vezes, que surgem desavenças, por causa dos bens, que temos de largar, à hora da morte. São bens perecíveis! Lamento sincero que tão vil razão cause turbações e mal-entendidos! Deu-me Deus esta irmã a quem sempre quis muito. Basta ser única e bastante dedicada.
Deus a proteja, conserve e ampare, que trabalhos e azar não lhe têm faltado! Pelo Céu generoso, indulgente e bom, compreensivo e deveras amante, alcancemos, ao menos a eterna felicidade!

Lisboa - Belém // 28-11-1984
Mudanças
O conceito, expresso ali, é chapa já gasta! Efectivamente, nota-se dia-a-dia, nos actos praticados. Quantas vezes se não muda, em 24 horas?! Temos por bom o que se achava deveras aprovável; julgamos reprovável o que tínhamos por bom! Porquê deste modo, se antes era outro o nosso critério?! A insegurança, relativa a conceitos e as limitações que nos afectam no mundo, são de facto as causas de tantas deficiências.
Ainda assim, mudar para melhor é um passo bom, seguro e louvável. De lamentar, porém, é mudar para pior! Vem isto a propósito de uma ideia passada, a que já fiz rosto, começando agora a perder interesse. Pois, ao que julgo, não se vai atenuando?! Tocava à sepultura, no campo santo que tem a Amadora. Isto, é claro, pelo simples facto de o julgar provável, residindo ali, à data da morte.
Entretanto, meditando sobre o caso, vou lançar-me desde já, noutra direcção. De facto, aquele cemitério faz-me cismar! Sempre que lá vou, fica-me, na alma, um vazio profundo! Como explicar o meu estado de espírito?! Sensação de abandono! Carência de afecto nos próprios mortos! Uma fé sem obras! Ausência de presenças! Falta de ornamentos! Desleixo no arranjo! Eu sei lá! Dá ganas de fugir!
Ora bem! Como após a morte não se pode já fugir, preferível é, assim o creio eu, fazê-lo em vida! Quero trocar! O primeiro que vi foi o da Ajuda. Ali fui também maior número de vezes. Presentemente, resido na área que pertence à zona enquadrada por ele. Sempre que lá vou, fico bem disposto.
O arranjo das campas, a arte das flores, a sua distribuição, a frescura das rosas, a limpeza e a graça dos arruamentos, o calor invisível que ali nos penetra, a luz etérea que banha a nossa alma, o afecto acrisolado que se desprende de tudo aquilo, gera em meu peito aconchego e paz! Sinto-me atraído!
É como o lar, que prende e acarinha! Uma bênção divina, que acompanha na vida! Um amor solidário, que logo me banha, alagando-me todo! Quero antes, na verdade, repousar no local! Sempre há-de haver alguém que me visite, rezando também pelo meu repouso, além desta vida.

Lisboa - Belém // 29-11- 1984
“Mulheres Espetadas”
Da palavra ‘espeto’ vem directamente, por sufixação, o verbo ‘espetar’ que, segundo os casos, pode ser reflexo ‘espetar-se’ ou ainda transitivo directo. Sendo reflexo, designa uma acção, que recai directamente sobre quem a pratica. Exemplo: ’Joana cortou-se’. Nestas circunstâncias, a acção de cortar foi levada a efeito e sofrida também pelo mesmo agente (sujeito). Que outrem nos corte, bastante mau é, mas sendo o próprio a fazer tal acção, o caso figura absurdo e quase inaceitável.
Tratando-se do caso, no qual o sujeito pratica a acção, recaindo esta sobre outra pessoa, já não é absurdo embora seja mau ou tido como tal. Bom! Seja como for, entendo na minha, que ninguém, realmente, deve espetar-se ou contribuir para que outrem se espete ou seja espetado! É também conhecida aquela expressão: ‘Já te espetaste!’’Já me espetei!’´’ António espetou-se!’
Nestes casos, há sentido figurado e não literal! Que o sentido geral não se afasta muito! Em tais casos, significa esse verbo: desarranjar, tramar-se alguém, desequilibrar a vida; ainda transtorná-la; criar problemas; meter-se entre a espada e a mesma parede; estar mal aviado; fazer lindo serviço; desgraçar-se, até cavar a sepultura; ter pano para mangas; e assim por diante.
Está hoje em moda espetarem-se as mulheres, em sentido literal. Espetam-se elas no próprio cigarro. Acontece, porém, que o verbo, em tal caso, tem duplo sentido: literal e moral! (figurado). É uma carga excessiva! Poucos verbos se igualam ao que temos entre mãos! A mulher fumadora espeta-se no cigarro, afunda as finanças e a saúde própria. Além disso, espeta o marido e os próprios filhos, que já nascem drogados, algo tarados e deficientes.

Lisboa - Belém // 30-11-1984
É preciso coragem!
Pode ser uma expressão de sentido emocional, quer para incitarmos outrem a tomar resoluções e dar em breve o passo em frente, quer ainda para mostrar desagrado, lavrando protestos. No primeiro caso, é digno de louvor quem toma a iniciativa, infundindo ânimo em caso de apuros. Quantas vezes, uma palavra oportuna consegue maravilhas! Alguém que hesita, recua e treme, perante as dificuldades! Alguém que vacila, caído no chão, vencido e mesquinho! Pessoa amiga atira-lhe ao ouvido: “É preciso coragem!” Opera-se o milagre! Cessaram os perigos! Voaram as barreiras!
No segundo caso, é o reverso da medalha! Alguém se atreveu a fazer uma coisa que é reprovável, e digna de censura, acto bem feio, deveras inadmissível, por ser repugnante! Dados estes factos, surge a reprovação, expressa nas palavras: “É preciso coragem!”
Falta esclarecer um aspecto da questão. Denodo e ousadia são próprios do jovem. É à juventude que se pede logo generosidade, esforço e valentia! Não vamos fazer isto a pessoas adultas! Também não pensamos que as pessoas idosas sejam tão ousadas, que imitem os novos. Nem elas o fazem nem se espera tal coisa!
Esta manhã, porém, notei uma excepção, com alta surpresa, cá da minha parte! Foi ali abaixo, à paragem do eléctrico, em frente ao Museu dos Coches. Era um homem robusto dos seus 50 anos ou pouco mais. Estatura média, cabelo grisalho e barba intonsa, já quase branca. Parecia respeitável, que trajava de preto e mantinha um ar que diríamos grave. Tudo muito bem, até ao momento! Bom!
Afrouxando carro a marcha habitual, apareceu o tipo, abeirando-se um pouco da pequena janela que as viaturas apresentam, na parte superior. Para quê?! Ninguém o vai dizer! Para arremessar, da boca suja, enorme ‘torpedo’, feito de imundície. Grande estupidez e sangue frio!!!

Lisboa - Belém // 1-12-1984
Que nome lhe pôr?!
Dá sempre cuidados o nome de alguém. Tratando-se de objectos, é quase a mesma coisa, uma vez que o nome expressa e concretiza a realidade existente. Em si mesmo é coisa abstracta, mas actua sempre como se não fosse. Que é que sucede, mofando alguém do nome alheio?! Não vem o lesado pedir explicação de quanto sucedeu?! E exige pormenores, insignificâncias, aspectos banais, donde concluímos: entre nome e objecto não existe diferença.
Por tais razões, ando atarefado, a fim de achar um designativo, que seja apropriado. Trata-se meramente do título a pôr a um dos meus livrinhos, que já está dormindo, quietinho na gaveta, vai para 10 anos! Pois não foi escrito, naquele trágico ano de 1975?! Data lutuosa e de martírio, em que alma e corpo ficaram destroçados, na querida Angola!
Problemas económicos, de carácter psicológico e sentimental, casos de assassínio e altas privações, esbulho de tudo!.. Vem a propósito a morte da Guida, a nossa estremecida e amável Guidinha, em Silva Porto, distrito do Bié! Como esse caso altamente nos feriu, aos pais e a mim bem como aos irmãos, dediquei-lhe por isso uma série de Diários, a que juntei depois escrito sobre ela, tendo sempre em vista a sua publicação. Até ao presente, não foi possível, mercê de circunstâncias de vária ordem. Seria bom fazê-lo, no próximo ano, decorrida uma década: 1975-1985!
O nome dela era Margarida, precisamente igual ao de minha mãe! Eu, em pessoa, é que o sugeri. Pôr só Margarida, na capa do livro, muito pouco diz! Que vou então escolher? É o que agora me ocupa! Continuarei a pensar, descobrindo uma saída que seja razoável.

Lisboa - Belém // 2-12-1984
Continuação
Devia ser um título que chamasse a atenção, dando a perceber o que o livro contém. Mas encontrá-lo? “Um crime hediondo”? Mas ele há tanto crime a ser abrangido por tal designação! “Um grito nas trevas”? É também insuficiente, na questão em foco! O que mais há são gritos do género!
Ela, por sua vez, dedicava-se às Musas, escrevendo poemas e, de igual modo se entregava à prosa. Adorava realmente o ramo epistolar. Ficaram muitas cartas a atestar esse facto. As melhores, porém, e mais inspiradas não pude alcançá-las! Foram dirigidas a um jovem finalista de Matéria Electrónica, ao tempo residente, em Lourenço Marques.
Este caso deu-me que pensar, já que tentei pedi-las! Fiz saber, nessa data, a minha pretensão, mas ninguém respondeu! Ignoro, pois, o que tenha havido! Assassínio global de toda a família?! Chamava-se Rui e tentava, em breve, especializar-se, nos Estados Unidos. No meio de tudo, não pude ainda encontrar o que tanto desejo! “Flores sem fruto”? De facto, o seu amor não pôde florescer!
Há, no entanto, um grande contra: Almeida Garrete designou assim um dos seus livros. Portanto, nada colhe tal posição! “Amor ensombrado?” E pouco sugestivo! “Noivado Infeliz”? Mas há tantos aí, que são infelizes! “Vem! Espero-te ansiosa”? Foi a legenda aposta a um desenho, que lhe foi enviado em 74. Figuravam os dizeres, junto dum carro, BMW, marca dele preferida. À falta de melhor, talvez se aproveitasse!
“Três pintas vermelhas” (alusão à bata que usava no Liceu, na qual sua mãe as pôde observar. “Angolana fiel de 4 costados”, “Uma bala assassina”, “ Amor sepultado”, “Deflagra o Incêndio”,” Silva Porto em chamas”, “Amor e Sangue”,” Uma Tarde crucial”, “Primavera submersa”,”Um Banho de Sangue”, “Jovem menina que todos adoravam”, “Uma Tarde inolvidável”, “ Amor e Pranto, Sangue e Tragédia”, “Amor e Pranto, Sangue e Morte”.

Lisboa - Belém // 3-12-1984
“Vem. Espero-te, ansiosa”
Quem isto escreveu já não vive neste mundo. Reside noutra esfera, onde reina a ventura e a justiça tem assento! Partiu cá da Terra, a 8 de Maio de 1975. Dia terrível, que encheu de horror, espanto e luto o nosso coração! Com 19 anos, assim a perdemos!
A sua aspiração era tão-somente viver para Angola, sua pátria querida, formar-se em Letras e trabalhar na UNITA, para glória e progresso da pátria amada. O diabo, porém, meteu-se de permeio, não deixando realizar o sonho tão querido! Uma bala assassina prostrou-a para sempre, no próprio Liceu, onde era estudante.
Antes, porém, embalava-lhe a alma outro sonho belo – a fundação do seu lar. Carteava-se com alguém que vivia em Moçambique – Lourenço Marques. Manteve-se, entre ambos, um diálogo constante, vivo, atraente! Nunca se viram, a não ser em fotos. No entanto, as coisas progrediram, assumindo tal vulto, que pensávamos já no enlace final e definitivo, a realizar, em tempo breve.
Chamava-se Rui o grande eleito de Margarida e era, ao tempo, já finalista de Electrotecnia. Projectava o Rui levar já Margarida, em sua companhia, para os Estados Unidos. Tudo corria bem, havendo-se ajustado um encontro, em Angola, a 4 de Agosto de 1974. Viria de avião, atravessando o Sul da África. Seria no Chitembo o remate da viagem.
Quanta ansiedade no peito de Margarida! Na Páscoa desse ano, enviara-lhe um desenho, que me deixou ver. Maravilha autêntica! Um BMW, com esta legenda: ”Vem! Espero-te breve, com ansiedade!”
Era um mimo! Artista nata, sabia imprimir o que sentia na alma! Ele, porém, é que não veio! A revolução é que o ceifou talvez! Um ano depois, coube também a vez à infeliz Margarida! Deus os tenha no Céu, aonde se deslocaram, a fim de realizar as núpcias eternas!

Lisboa - Belém // 4-12-1984
Que me trouxe, afinal, o 25 de Abril?
A fim de avaliar, acerca da bondade ou aspectos defensáveis , que possa oferecer-me o 25 de Abril, nada há, julgo eu ,como debruçar-me sobre tal assunto. Se apenas a mim tivesse feito mal, havendo feito bem a todos os outros, tinha ainda uma razão de valor suficiente, para dar-lhe apoio. Isto, porém, é que não ocorreu!
Milhões de portugueses, de cores diferentes, religiões e raças, as mais variadas, estão ainda gemendo, sob o peso da cruz, que esse dia triste veio pôr-lhe nos ombros. Toca-me agora falar em pormenor do caso pessoal. O que mais atormentou a minha pobre alma, tão desditosa foi certamente, o crime nefando, perpetrado em Silva Porto a 8 de Maio de 1975. Bastava isso realmente, para enodoar a Revolução, no tocante a mim! O assassínio deplorável de uma jovem rapariga, aos 20 anos incompletos. Ia perfazê-los , no mês de Novembro.
Este abuso condenável - tirar a vida à inocente - deixando em agonia todos os que a amavam, não pode olvidar-se nem existem palavras, capazes de exprimir quanto eu repudio, verbero e reprovo tão grande crueldade! Faço-o neste dia, como tio e padrinho, amigo dedicado e seu admirador.
Após este caso, que me enlutou a alma, e foi parto directo desse negro dia, vieram os danos de ordem material: cá no país, o baque da Torralta, que até à data, jaz enlameada, provocando esconjuros e palavras deprimentes aos que foram defraudados, vendo ir pelos ares o fruto de canseiras, longas vigílias e grandes privações! Em Angola, sucedeu-me coisa igual! O trabalho porfioso, constante e árduo, que ali executei, de nada me valeu! Retiveram os Bancos suores e restrições, economias e tudo o mais!
Agora outro aspecto de natureza moral: a peregrinação, por terras inóspitas, sofrendo por mim e por quantos vi chorar, de mágoa e rancor.

Lisboa - Belém // 5-12-1984
Continuação
Afecta-me fundo o sofrimento dos meus. Além deste, o de milhões, já do continente, já do ultramar, que perderam, num instante, o que haviam poupado, ao longo da existência. Não acho palavras nem há vocabulário, por mais rico e expressivo, ou que forneçam achegas, para eu traduzir o que foram essas horas esses meses deploráveis, esses anos longos e infindáveis, como fruto directo desse negro dia!
O que foi esse ano de 1975, na esfera escolar, que melhor conheço! Em seguida, quer dizer, após o ano escolar que terminara em Julho, a fuga desvairada, percorrendo areais, e roçando amiúde em acúleos de espinheiras, que feriam o corpo, dilacerando a alma! As lágrimas ardentes que vi derramar, os suspiros fundos que ouvi arrancar de peitos chagados, os ais lamentosos que ressoavam frequentes, pelo ar circundante, tudo isso e mais que me enlutou para sempre, ficou bem gravado aqui na minha alma, que agora o recorda em grande alvoroço e abalo tremendo!
Das crianças nem falo! Corta logo cerce o coração mais duro, vendo o que eu vi! Nos braços de suas mães, que as olhavam consternadas e cheias de dor, esbracejando elas, com os olhos cerrados, soltando ali gritos lancinantes, que entravam fundo no meu coração! Era a fome, o espectro medonho que pairava sobre nós, indo reflectir-se nas pobres inocentes!
Como descrever tal barbaridade, tanta insensatez, tão amarga lembrança?! Mais vale esquecer! Mas consegui-lo?! Assim eu pudera! Efectivamente, os dez anos transcorridos não foram bastantes, para sanar feridas, tão vivas e fundas! Por que vem a imprensa com festas e discursos, parecendo assim que tudo foi belo?! Não! A mancha de sangue avoluma-se mais, por terras de Angola, Moçambique e Timor!
E cá? O espectro da fome espreita-nos já, caminhando para nós, a largas passadas! Dêem-me cá um 25 de Abril que seja diferente, para me contentar! Que seja autêntico. Talvez o inicial. Este não serve! Nem 8 nem 80!

Lisboa - Belém // 6-12-1984
“Tu tivestes muita sorte”
Ouve-se amiúde à gente do povo e até, por vezes, a outra pessoa, que se deixa levar por aquilo que observa. A verdade porém, é que infringe a regra com origem no Latim. Toda a gente sabe que a Língua portuguesa pertence ao grupo das Línguas românicas, bem como o Francês, Castelhano e Provençal, Italiano e Catalão, Romeno e Ladino. Havendo estas por mãe a Língua do Lácio (Latim) é bem natural que se encontrem próximas, ostentando sinais, que denotem a origem e revelem parentesco de boas imãs.
Voltando ao caso, apontado na epígrafe, procurarei fazer o paralelo exacto entre a nossa Língua e a Língua-mãe, no que diz respeito a desinências pessoais, no presente indicativo e no perfeito simples. Desta maneira, veremos com nitidez, o alto despropósito da forma “tu tivestes”.
Tomemos para exemplo um verbo regular, primeira conjugação, no presente indicativo; amo, amas, amat, amamus, amatis, amant. Vê-se bem a semelhança entre as duas Línguas. O tema ‘ama’ é comum; as desinências pessoais também são as mesmas, com leves alterações. Latim: o-s-t-mus-tis-nt. Português: o-s-zero-mos-is-m.
Tratemos agora do perfeito simples.
Já comparámos o presente indicativo, em Latim e Português, verificando serem iguais, com leves alterações. Quanto ao perfeito simples, dá-se o mesmo caso. Formas incompletas do perfeito simples, na Língua latina, (sem a característica temporal ‘vi’ no interior): amavi-amasti-amaut-amamus-amastis-amarunt.
A desinência ‘sti’, na segunda pessoa do singular, não tem ‘s’ final como a do presente: tu amas; tu amaste. Daqui vem a confusão de muitos portugueses. Temos, pois, a síncope do ‘vi’; a exclusão da vogal nasal, em fim de palavra (amaro); recurso à diérese: amarom-> amarão-> amaram; em amai, assimilação incompleta do ‘a’ pelo ‘i’.

Lisboa - Belém // 7-12-1984
“… o que é que …“
Ouvi a expressão, enquadrada numa frase. Conhecia-a, de criança, mas passara de memória. Saí da minha aldeia, aos 16 anos, por isso, esqueço muitas coisas ou ficaram atenuadas. Entretanto, se as ouvir, identifico-as logo. Outras ainda vêm ao de cima, espontaneamente, o que vai acontecendo menos, devido aos anos.
Gostei de registá-la, que vai ganhando campo, em Lisboa e arredores, outra forma de expressão, que é equivalente. Voltemos desde já, a uma frase completa, onde a primeira fique inserida: “Quando era adolescente o menino João Pedro tinha aspirações, o que é que seus pais não podiam satisfazer-lhas, por falta de meios”.
Pelo sentido, penetra-se bem no conteúdo em foco. Vê-se clara mente que há oposição entre “aspirar e satisfazer”. Levanta-se, de facto, uma barreira entre as duas realidades, a qual reside por certo na escassez de recursos, em ordem aos pais. Esta situação é de facto adversa e, por isso contrária às grandes aspirações do pobre João Pedro. Tem, pois, ali, carácter adversativo a expressão do topo.
Daí que podemos utilizar a conjunção ‘mas’, em vez de ‘o que é que’ Assim: “Quando era adolescente, o João Pedro tinha aspirações, ‘mas’ seus pais não podiam satisfazer-lhas”.
Na linguagem de Lisboa e também da Amadora depara-se um modismo, para mim desconhecido, o qual se aproxima, bastantemente, do que vem ao cimo. Apresenta, pois, carácter oposto ou adversativo: ‘só que’. Exemplo: “Quando era adolescente, o João Pedro já tinha aspirações, ‘só que’ seus pais não podiam satisfazer-lhas”.
Para análise sintáctica, subentende-se o verbo ‘acontecer’, entre as duas palavras: “só só ‘acontecia’ que…”

Lisboa - Belém // 8-12-1984
Como pronunciar?
Estou na Amadora; vou para a Amadora; venho da Amadora; saio da Amadora; cheguei à Amadora; subi à Amadora.
As pessoas iletradas não têm dificuldade; as eruditas, principalmente as que estudaram Filologia e se acham ao corrente dos factos linguísticos e leis respectivas, ao longo dos tempos, de igual modo também.
O caso baralha-se, entra em desordem com pessoas ledoras, mas sem cultura de tipo filológico. O seu cuidado é ler, a rigor, como a letra se apresenta. Torna-se bom lembrar o seguinte: a letra mata; o espírito vivifica! A palavra, em si, é uma forma estática, de per si, é morta, insensível e persistente.
Falada, porém, apresenta-se com vida, e esta, por sua vez, nunca estaciona. Quero dizer: toda a palavra, à maneira do ser vivo, sofre alterações, que são, neste caso, de natureza fonética, também morfológica e ideológica. Por isso, distinguimos as línguas em grupos conhecidos: vivas e mortas. No último grupo enquadra-se o Latim e o Grego (antigo). Estas não se alteram. No primeiro, a Língua portuguesa e outras semelhantes.
Qualquer idioma tende a realizar-se, pela via mais simples. Para tanto, recorre a elisões, assimilação, dissimilação e crases; palatização, prótese, epêntese e paragoge; aférese, síncope e apócope, sinérese, diérese e outras ainda. São como vemos os chamados metaplasmos.
Certas palavras mudam de sentido (semântica); parte delas cai em desuso (arcaísmo); outras ainda perdem sílabas ou sons, no interior. Nas palavras do topo, em que entram vogais ásperas, logo seguidas: ‘na A’; ‘da A’; ‘para A’, origina-se um hiato (encontro de vogais ásperas (a-e-o). Todos sabemos como são deselegantes tais encontros, para efeito de pronúncia.
Como afastá-los foneticamente? O povo ignorante é mestre disso! Por vezes, intercala uma vogal (i ou u). Noutros casos, recorre à crase: contracção de duas vogais numa só aberta: ‘nÁ’. Exemplos: nA – dA - parA ou prA. No outro caso: ‘na Ásia’ lê-se ‘naiÁsia’.

Lisboa - Belém // 9-12-1984
Que fazes aí, pobre Cigana?!
Nestes dizeres, há uma palavra, com dose enorme de piedade e sentimento. Trata-se, evidentemente, do termo ‘pobre’. É ela que encerra, de modo cabal, o drama vivido e por mim alcançado, num destes dias. Note-se, a propósito, que o termo aludido, está antes do nome, contra a regra geral, que, na Língua portuguesa, o manda colocar só depois dele!
Verifique-se, portanto, a enorme diferença, nos exemplos seguintes: “as casas lindas, que ontem vimos, foram já compradas por um amigo”. Neste caso, a palavra ‘linda’ é um termo frio, que nos deixa apáticos. Não faz vibrar, permanecendo nós firmemente inalteráveis. Se mudarmos, porém, o lugar que ocupa, altera-se logo o efeito dela.
“Que linda casa”! Ou ainda: “quem terá comprado a linda casa, que nós ontem vimos”?! Voltando à frase que vemos ao cimo: “o homem pobre, que ontem morreu, foi hoje enterrado”. A palavra ‘pobre’ exprime simplesmente o conceito geral – privado de bens, vivendo na penúria. Ouvindo pronunciá-lo, ficamos apáticos ou seja indiferentes, perante o sucedido.
Entretanto, se dissermos: “o pobre homem não tinha amigos”! Significa muito mais, pois que, ao estado de carência, (sendo esse o caso), junta o de infelicidade. Podia até ser rico, mas viver de facto muito infeliz. Esta circunstância actua em nós, fazendo-nos vibrar, de maneira intensa! É que o termo chega até nós carregado de emoção, piedade, sentimento e comiseração! Postos de início tais considerandos, é tempo de voltarmos à frase do topo: “que fazes aí, pobre Cigana”?!
Como vemos, o termo ‘pobre’ está posicionado, antes do substantivo. No Diário seguinte, aclaro a situação.

Lisboa - Belém // 10-12-1984
“Que fazes aí, pobre Cigana?” - continuação
Toda a carga emocional recai, evidentemente, sobre o termo ‘pobre’. Terá bens acumulados a dita Cigana?! Mais provável que sim do que ser ao contrário! Com efeito o jazigo novo que, há pouco se ergueu, a isso conduz!
É um lindo repositório, ali acima na Ajuda. Por esta razão, me inclino bastante para aquele juízo. Sendo isto assim, a aludida Cigana terá bens materiais, faltando-lhe somente a paz de espírito e o belo repouso de seu coração.
Aclarando a situação, vou já proporcionar alguns dados valiosos, colhidos por mim, há pouco ainda. Era por uma tarde, harto chuvosa, deveras fria e bastante ventosa, nos fins de Novembro.
No cemitério da Ajuda, achava-se uma mulher, à porta do jazigo, melhor diria, no limiar da porta, de costas para fora. Passava eu, nessa hora, em que a vi curvada, como tendo às costas um fardo esmagador. Logo pertinho, pela banda exterior, acomodava-se, em sua defesa, o enorme guarda-chuva, fazendo convexidade para o lado interior.
Servia, com certeza para abrigar da aragem e, do mesmo passo, evitar ainda a penetração da chuva, fustigada pelo vento. Não lhe vi o rosto, mas imaginei-o banhado em pranto. Os jarrões de flores, logo à entrada, falam de saudade, ausência e dor, e o fato da Cigana, todo enegrecido, avantajado e amplo diz alguma coisa da grande tragédia!
Ao vê-la assim, arqueada e vencida, quase esmagada, sob o peso da cruz, apiedei-me em extremo da mulher que é mãe e perdera, cá na terra, dois grandes tesouros. Que imensa agonia! Que lágrimas ardentes! Que situação, agora intraduzível em palavras humanas! Os dois únicos filhos (ele e ela) sepultados ali, no mesmo dia! Passa lá o tempo a pobre Cigana, recordando o passado, em que era feliz! Esses olhos amorosos, que alegravam os seus, apagaram-se ali, para todo o sempre, cá neste mundo!
Ouve, escuta, Cigana desditosa: os teus amores arribaram decerto às praias eternas, onde contemplam, juntinho a Deus, a tua aflição. Eles pedem ao Senhor te dê paz e conforto, a fim de enxugarem tuas lágrimas ardentes!

Lisboa - Belém // 11-12-1984
Iam os dois
Era a 27 do mês de Novembro, no ano corrente. Um casal tristonho, dos seus 50 ou por aí, percorria alheado o passeio central, no cemitério da Ajuda. Ele, com barba intonsa e muito comprida; ela, por sua vez, de saia talar, ampla, rodada. A cor, em ambos, preta de azeviche.
Suponho eu tratar-se dum casal. Aquelas mesmas pessoas, que há 20 e poucos anos se haviam enamorado, caindo a breve trecho, nos braços um do outro! Nessa data, vestiam a capricho, usando cores vivas. Então, falavam de amores, tornando-se gárrulos. Quem os visse ficaria tocado, mercê da euforia, a que ambos se entregavam. Eram ambos sorriso, olhares amorosos, palavras doces, fina gentileza, aprumo sem igual. Agora, porém, vão silenciosos, dominados por um facto, que avassala os dois.
Vão ensimesmados, entregues a seu mundo, aquele mundo querido, que a desgraça arruinou e a vida subtraiu, para todo o sempre, cá no planeta! A nada atendem! Não olham nem inquirem! Um só objectivo os toma e avassala! O seu mundo é diferente. Mora muito longe! Para além, talvez, das próprias estrelas! Eu, então vejo-os deslizar, com passo incerto e olhar no vácuo!
Apieda-se ali, por saber há tempos que sofrem imenso, vergados que andam pela mesma dor! Aonde vão sei eu, que já antes os vira, num certo local. Lá jazem dois corpos: o filho e a filha. Sigo, pois, com eles e, enquanto o faço, medito a fundo no martírio da vida e suas decepções. O amor e a amizade, a alegria incontida, os sonhos belos e os castelos dourados, que animam as almas, todo isso morreu, anichando-se num túmulo, onde os corpos gangrenam. Que tristeza! É este espólio, que velam e veneram. Às vezes, é um só; outras vezes, são ambos. Pobres ciganos! Vós sois crentes?! As almas de vossos filhos vivem já noutra esfera, esse mundo celeste, onde as lágrimas se enxugam e a dor não tem vez! Que esta fé vos alente, dando-vos força para viver.

Lisboa - Belém // 12-12-1984
Dois raios luminosos
Nunca pude esquecer, ao longo da vida, o efeito repousante dum raio luminoso. Estava em Manteigas, onde a neve e o frio são dignos de respeito. A cobertura plúmbea, que se mantém, por vezes, dias a fio, impede ali o Sol amoroso de chegar ao fundo. O que eu passei, envolto em humidade, escuridão e gelo! Verdadeiro heroísmo para quem não brotou de tão álgido fundão! Acomodar-se a gente não acho possível!
Em dia muito escuro, por a névoa ser densa e ocultar o horizonte, encontrava-me cismando, ao irradiador, companheiro inseparável das horas solitárias. Nisto, um raio de Sol entra pela janela (era ainda no velho Hospital, oferecido à vila pelo famoso Afonso Costa) e banha-me todo, em sua carícia. Que momento ditoso! Nessa hora, esqueceram, para logo, os males da vida! Senti-me feliz e até lisonjeado! Mereceria acaso a honrada visita?!
Fiquei maravilhado e cheio de ternura! Com enlevo de alma, olhei para ele, a fazer-me carícias e trazer energias ao meu coração! A ventura do momento abrangeu a minha vida e nada aí no mundo poderá jamais fazê-la olvidar! Este raio foi autêntico e operou maravilhas! A sua estrutura era material, e tocou o meu corpo. Tudo, a rigor, escala da matéria!
Há raios, porém, de outra natureza, quanto à substância, os quais não atingem o corpo, mas a própria alma. Ninguém o ignora! Quantas vezes não sucede inebriar-nos o ser a atitude de alguém?! Um sorriso talvez, bem diferente dos outros! Uma gentileza, que usaram connosco! Uma prova de amor, amizade ou afecto, que nos embala a alma e enleva o coração! Um balbuciar, entrecortado, às vezes, por fundos suspiros! Um ósculo ardente, que deixa na face, gravada para sempre, a marca indelével dum afecto sem par! .

Lisboa - Belém // 13-12-1984
Continuação
Os raios luminosos a que já me referi não foram simultâneos! Um visitou-me, logo de manhã; outro, de tarde! Não eram feitos de luz, esta luz material, que às vezes encandeia. Era outra substância, muito mais subtil. Não banharam o meu corpo, fosse embora através dele que atingiram a alma. Nesta Lisboa de gente cosmopolita, dominada geralmente por alto frenesi, cria-se um ambiente como feito de gelo, nevoeiro denso e plúmbeo céu.
Tudo isto realmente denota ausência de Sol criador, e portanto de seus raios luminosos. Como pode então chegar até mim um raio luminoso, criador de bem-estar e grata disposição?! É o que vamos ver, não tarda um segundo. O primeiro verificou-se no eléctrico. Por via de regra, são os cobradores homens sisudos que falam bem pouco, restringindo ao máximo o uso da língua e mostrando no aspecto a frieza interior. Desta vez, porém, houve excepção. Trata-se dum sujeito, procedente do Norte (se não me engano, é de Valença).
De seus olhos ressumbra bonomia! Todo gentileza, cativa quem o ouve ou contempla seus modos. É dado no trato, meigo nas palavras; acessível a todos. Fala mavioso, enquanto sorri, espalhando bondade por quantos o escutam. Já não é aquele homem, pesado e severo que entrega os bilhetes e recebe o dinheiro. Nem o tipo habitual daquele funcionário que é gelo e pedra, lidando embora com seres humanos.
Graciosa atmosfera ali se gerou, dentro de segundos! Um mundo novo com graça e encanto, onde seria doce ficar para sempre! Já não era a Lisboa, sempre carrancuda, austera, insensível! Um ente humano, sim, com grande benignidade, altruísmo, suavidade!
O outro raio luminoso que prendeu igualmente e desceu à minha alma, encontrei-o depois, nos Correios de Belém. Uma senhora, ainda nova, talvez menina, espalha à sua roda uma chuva de sorrisos, bem-estar e paz!
Como seria outro o mundo que habitamos, se todos os mortais fossem como estes!

Lisboa - Belém // 14-12-1984
“ Sendes só dois e valendes por 40!”
Ocorreu no eléctrico, durante a semana. Cenas do género são muito frequentes, o que mostra claro a indisciplina, falta de civismo e nenhuma educação. É algo habitual ver em nossos transportes adolescente e jovens, com jeitos e maneiras, próprias de selvagens, melhor diria talvez, semelhantes a cafres. Quem é que os não viu, já nos auto-carros, já nos eléctricos, molestando os passageiros e enchendo-os de nervos?!
Um berrar selvagem, movimentos alargados, encontrões e choques, suspensões e balanços, a tudo recorrem, sem peso nem medida. Não se lembram sequer que devemos ter em conta as pessoas presentes! Estas, afinal, já pela idade, já por doenças que as vão minando, merecem atenção.
Pois desta vez eram dois adolescentes, autênticos diabretes, que abriam as janelas, pendurando-se ali, enquanto seus dizeres, atirados para fora, iam molestar os peões da via. Enquanto assim, barafustava ali o velho cobrador, que não retinha os nervos, protestando vivamente contra as suas atitudes. Entre as palavras que então proferiu, acham-se aquelas que vêm ao alto.
Revelam incultura, bem entendido, mas são na verdade, a expressão bem clara da sua indignação e inconformismo. Quanto eu lamento que isto se dê, já no século XX, numa região que é das mais antigas, do continente europeu!
Agora, um olhar atento, sobre a Gramática. O analfabetismo é chaga entre nós. E já foi bem pior! Entretanto, verifica-se ainda, em certas camadas da população. A forma ‘sendes’, em vez de ‘sois’, obtém-se ali, por analogia com ‘tendes’ do verbo ter. O mesmo se dá, quanto a ‘valendes’.

Lisboa - Belém // 15-12-1984
O Cão fiel
O caso é verídico e deu-se em Moçambique, durante o período, que dá por ’terrorismo’. Infelizmente, a agitação continua, sem que haja melhoria. É um facto real, que bastante impressiona. Por esta razão, dedico-lhe um Diário. Os simpáticos bichos, que seguem o homem, e tantas vezes o defendem, até quando em apuros, merecem de facto a nossa estima.
Chegam, por vezes, a enternecer! A dedicação e firme constância, que revelam, nas maneiras, geram, em nós afecto e gratidão! É de ver, por exemplo, esses cães maravilhosos, que actuam nos Alpes – os cães de S.Bernardo, correndo sobre a neve, para salvar os turistas já desmaiados e entorpecidos! Outra raça admirável, o pastor alemão! Que maravilha de bichos, lutando vigorosos, contra o inimigo, à voz dos seus donos!
Pois em Moçambique, por azar da sorte, deu-se o contrário! Ouvi narrar o facto e deu-me que pensar! Como pôde acontecer gorar-se a finalidade, contribuindo para a morte o que devia, por força, encaminhar para a vida?! Mas foi assim! Passo a contar. Fugindo à morte, que aterra as gentes e as descontrola, certo cavalheiro esgueira-se prestes, dando logo à sola, com todo o vigor. Sucedeu na fuga encontrar uma árvore, bastante copada, que logo aproveitou, para seu esconderijo. O inimigo, indo na peugada, afastara-se bastante, mas prosseguia, tentando com esforço descobrir uma pista. Já desanimava, pois havia corrido e o tempo urgia. Não vendo vestígios da sua passagem, ia desistir. Nisto, um cão pára rente à árvore, atraído pelo faro, estanca de pronto e solta ladridos de enorme alegria.
Dentro em breve, era já cadáver o pobre dono!

Lisboa - Belém // 16-12-1984
“Amor e Pranto, Sangue e Morte”
Será este, de facto, o que vai ficar?! Estou hesitante e não me decido. Poderá suceder que o tempo me ajude. Trata-se do livro, sobre a nossa Guida, aquela Margarida, afilhada e sobrinha, que foi assassinada a 8 de Maio de 1975, em Silva Porto, Bié, Angola. Vem o caso ao de cima, porque ando afadigado, no tocante ao facto. Efectivamente, acabei a revisão, sobre o texto final e definitivo, já passado à máquina.
Chegado a este ponto, são portanto duas as minhas dificuldades: 1. a questão do título; 2. o caso das poesias.
Quanto aos meus Diários, acerca do assunto, nenhum problema! Elevam-se, ao que julgo, a 69. Já se encontram em forma! Se voltar a lê-los, ainda os altero. Acho sempre algo a expurgar, ali: dados a suprimir ou ainda alterar. A prosa da Guida, relativa às cartas não me dá problemas. O caso levanta-se, perante a lírica.
Quais são afinal os poemas dela? Quais é que não? Vejo-me em apuros! Como foi imprevista a morte que a levou, tudo andava misturado em vários cadernos. Além disso, a poesia em geral, é um género subtil que não me assenta bem, no tocante ao ritmo e à forma da linguagem. Ainda sacrifico, nas aras tradicionais. Há certos aspectos de que eu não prescindo: uma boa cadência, um ritmo perfeito, e a mesma rima são coisas valiosas que me fazem falta!
Entretanto, as poesias arquivadas mostram bem a psicologia, o carácter límpido e as aspirações da Maria Margarida. Introvertida, ao menos em parte, apenas os seus escritos a revelam cabalmente. Alma insatisfeita, algo complexada, mas bela e sã, aspirava a um mundo que não é de agora, (isto, na parte moral). Deus, porém, resolveu-lhe o problema, chamando-a para Si, dando-lhe um prémio noutro mundo mais belo!
Razão tinha ela, para escrever um dia: “Talvez eu viva já pouco. No outro mundo, encontrarei eu o que este me negou”

Lisboa - Belém // 17-12-1984
Deus Criador tudo faz bem
Nem surpreende que seja assim! Efectivamente, sendo infinito em seus atributos, havia de saber a maneira perfeita, de tudo realizar, com alto nível! Por isso dizemos ser Ele omnisciente! A partir daqui, exclui-se todo erro, a mínima falha, qualquer deficiência!
Vem isto a propósito, em ordem aos que dizem: era muito melhor prever-se o futuro, para sabermos ao certo o que vai acontecer. Evitavam-se males e tomavam-se medidas, que são indispensáveis!
Eu, porém, discordo! Que seria de nós, sabendo com certeza, quando morríamos?! Quando se finavam os entes queridos?! Nem posso imaginar! Entretanto, assiste-me a impressão de que seria horrível! Aplicando agora a um caso pessoal: faz hoje, a rigor, 32 anos andava eu assaz embevecido por terras de Pinhel, onde era professor do conhecido Externato, de João Pinto Ribeiro. Decorria, nessa data, o terceiro ano da minha permanência, naquela cidade.
O dia 17 passava como os outros: dava as minhas aulas, cheio de entusiasmo, diria, com fervor! Alunos e alunas eram para mim a vida da alma. depois de Deus. Considerava-os família, à qual já tinha prendido o meu coração! Mercê de tal facto, sentia-me feliz e quase realizado! Amava o ensino e era considerado! Jamais esquecerei esse tempo saudoso. Entrara ali, aos 32 anos!
Pois bem. Esse dia escoava-se, não tendo mais canseiras, além das aulas! No entanto, em Vide-Entre-Vinhas, meu berço natal, onde vira deslumbrado a primeira luz, algo de trágico se estava esboçando. Ia ser-me anunciado, no dia seguinte. Era, pois, a véspera duma grave ocorrência, na vida familiar e o primeiro grande choque a atingir a minha alma. Entretanto, como nada sabia, decorreu esse tempo envolto em sonhos.

É este um dia marcante, nos anais da minha vida. Como antes sucedia, iniciara as tarefas de natureza escolar, inteiramente estranho a quanto se passava, bem longe de mim. Se excluo o pensamento das férias de Natal , que estavam à porta, a minha tarefa absorvia-me todo. Ultimar os Pontos, dar notas aos jovens e tudo preparar, em final de período, era mais que suficiente, para me absorver. Entretanto, o homem põe e Deus dispõe.
Ele é que manda, pois é o Senhor! Nós, humildes criaturas, que vagueamos agora, por este mundo, em busca da ventura, procurando-a por vezes, em lugares impróprios, onde ela não está! Bem. Nesse dia azarento, a sensibilidade e o meu alheamento iam ser sacudidos por maneira vigorosa. Decorria, se me lembro, a aula de Português do 3ºano. Era um curso amoroso, que gerava em mim enorme simpatia.
Rapazes e meninas, todos caprichosos, no bom sentido! Preparavam as lições, eram cumpridores e muito obedientes. Lembro-me de todos, embora me não ocorram os nomes de alguns. Passado um bocado, eles vêm ao de cima: Julieta e Fátima, Teresinha Teixeira, António A. Nunes; o Amaral e José Agostinho e outros mais. A Emília Cunha não era também?!
Bom! No auge do entusiasmo, que a manhã despertara, ouço claramente o som da campainha: o telefone chamava, abrindo-se a escâncaras a porta da sala. Alguém entra ali, assaz penalizado, o que fundo alvoroça o coração de filho. Aguardo tremente as palavras assassinas, que vêm lentas, harto pesadas, esmagadoras: “Comunicam de Vide que seu pai está mal. Pedem que vá”.
Nesta hora, apaga-se-me a luz ! Um frémito de horror percorre o meu corpo e tento deslocar-me, sem o conseguir! Agarro-me aos objectos, socorrendo-me até das mesmas paredes! Tudo me esquecia! Era a noite do espírito!

Lisboa - Belém // 19-12-1984
Continuação
Assim aturdido, procuro o transporte (a velha carreira, Pinhel – Vila Franca). Uma vez aqui, tomaria o comboio rumo directo a Celorico da Beira. Chegado que fosse, alugava um táxi, que dentro em breve me poria, em Vide. Tudo isto eu fiz, em grande alheamento, pois o meu espírito andava por longe, correndo à frente. Achava impossível cruel e desumano ficar sem pai, o homem tão querido, amigo e bom. Não podia acreditar que tal sucedesse!
Nestes pensamentos que, de vez em quando, eram cortados por diálogos vivos e alegres cantares, alusivos ao Natal, chego finalmente a Vide-Entre-Vinhas. Já estava em presença. Falaria com ele, ouvindo seus ditos e sabendo ali a derradeira vontade. Seria caso disso? Iria a tempo? Grande seca! No dizer expressivo da mana Augusta, ninguém suspeitava de que fosse para logo tal desenlace! Não se queixara!
Mostrava aparência de que não enfermava de coisa perigosa! Andava, sim, na forma do costume. Um pouco debilitado! Um tanto de gripe! Em razão disso, um tanto de cautela, impedindo-o de sair. Sendo em Dezembro, tomavam providências, por causa do frio. Naquela noite, algo esfriada, que precedeu a sua morte, não foi à Laja, a fim de assistir à matança do porco, segundo o seu desejo. Se o não fez, deveu-se o facto à firme intervenção dos familiares.
Bem! Regressando já tarde, verificaram logo que ele tinha alguma coisa um pouco alarmante. Queixar-se é que não! Respondia sim, mas sumariamente, às perguntas formuladas e não se apoquentava. Rezou o terço em coro. A noite passou. A manhã de 18 foi angustiante para minha mãe, e de modo igual para a mana Augusta. Deixara de falar e cerrara os olhos. Respirava então com dificuldade, mas sempre calmo.
Nesta situação o fui encontrar, Já me não falou! Que tristeza a minha! Emudecera, cá neste mundo! Espero ouvi-lo um dia no Céu!

Lisboa - Belém // 20-12-1984
“Deus aperta, mas não afoga”
Ouvi este adágio a semana derradeira, a certa senhora, residente em Alcântara: Dona Maria Domingas, organista da igreja. Veio a pêlo, durante a conversa, a propósito do ónus, que agora lhe pesa - a longa doença do marido Engenheiro que, há bastantes meses, não sai de casa. Esta situação, ligada já se vê a todos os incómodos que o enfermo exige, traz graves problemas. É noite e dia, a todo momento! Mudança de lugar, fundas impaciências, harto frequentes, inconformidade, palavras e atitudes, que nem sempre caem bem.
Tudo isto rala, consome e tortura! Por estas razões, pergunto eu sempre, como vai de saúde. Mais ou menos, diz ela sempre, agitando a cabeça e dando leve jeito à mão direita. “Olhe, sabe? Já me esqueço agora de muita coisa! A grave doença de meu marido, noites mal dormidas, preocupações de toda a natureza!”
Em jeito de apoio e consolação, tento eu desviá-la um pouco. Deus a ajude! Ele não dorme. É Pai de bondade! Muito faz a senhora! Nisto, corta-me a palavra e atira com o anexim: “Deus aperta, mas não afoga!”
Achei-lhe graça! Era a primeira vez que tal sucedia! Jamais o ouvira! Além de curioso, está de harmonia com os Livros Santos. O Céu benigno manda provações e permite, às vezes, o próprio mal, a fim de nos curar. O objectivo é nobre! Alertar as gentes! Por vezes, dormimos, ao longo de vários anos. Em tais circunstâncias, precisamos, é claro, um bom safanão! Este vem-nos precisamente dos espinhos da vida! É a nossa cruz!
Aquilo que Deus manda ou ainda permite, destina-se à emenda e bem assim à purificação. Neste sentido é que nós dizemos: Deus aperta. Contudo, uma vez alertados, e postos de atalaia, para nos corrigirmos, Deus retira o aviso e dá consolação. Com grande propriedade e enorme sentido é que nós dizemos: “Deus aperta, mas não afoga”.

Lisboa - Belém // 21-12-1984
“Prestem atenção: vou dar-vos as perguntas”
Terrorismo? Esta palavra desperta alvoroço e origina calafrios! Quem os não teve, ao longo de vários anos da Guerra Colonial?! Índia, Moçambique, Angola e Guiné! Treze longos anos de guerra homicida, que as potências estrangeiras nos obrigaram a fazer! Seria por ideal que elas actuaram, distorcendo as razões e alegando motivos, que eram falsos e manhosos?! Seria realmente, por amor dos Negros?!
Para dar-lhes protecção, amparo, luz e guia?! Se alguém me convencesse, aderia prontamente! Mas eu não vou nisso! O que havia, de facto, era inveja e ambição! Os motivos alegados – poesia e ronha! Bom! O caso passou ou melhor ainda, continua suspenso e perigoso, encontrando-se, à data, bem pior do que nunca! O terrorismo prossegue, muito mais vivo, perigoso e façanhudo que em tempo algum!
Quem pode circular, ao longo das estradas?! Só usando avião, com grande cuidado! Sair das cidades é logo um problema! Decerto irão, mas não sabem logo se regressam depois! É o terrorismo que nada respeita e destrói o que acha! Palavra medonha que põe estremeções em nosso corpo.
A propósito de factos e homens ineptos que os vão provocando, lembrei-me já ontem dos novos terroristas, que estão grassando, no campo da Gramática. Pois não foi ontem o “um, dois, três”?! Às segundas-feiras, após o noticiário, já me espera aquilo. Parece que, em Janeiro, vai mudar para os sábados. Pois bem. Falando no assunto, vem logo uma figura que todos apreciam – o Carlos Cruz. De facto, ele tem qualidades: é original, pronto e sugestivo. Com ele presente, as gentes deliram! No campo da linguagem, verdadeiro ’terrorista’!

Lisboa - Belém // 22-12-1984
Continuação
Antes de mais, urge aclarar. Não o vi realmente, de armas na mão! Lá isso é verdade! No entanto, embora o vejamos em campo aberto, por não haver mata, nem armas à vista, sem detonação, que o ouvido registe, ele ataca e fere, destrói e mata, levando angústia aos amigos e cultores da Língua portuguesa. Debrucemo-nos então, sobre a Língua portuguesa, para evitar agressões e contágios perigosos.
É que ele, de facto usa outras armas também assassinas e prepara ciladas para gentes incautas; faz assaltos danosos, que trazem mal-estar e profunda tristeza. Até julgo, nesta hora, que o nosso Camões, embora indulgente, compreensivo e cheio de bondade, haverá estremecido na campa fria!
Vejamos então por onde é que lavra o terror e o mal que arruínam e matam a Língua Portuguesa, uma vez que a atingem na própria alma.”Prestem atenção: vou ler-vos as perguntas”. Aqui temos já, o grande assalto! As pessoas incautas não se aperceberam?! Atenção! Perigo à vista! A máxima cautela! Quem é o terrorista? Carlos Cruz, precisamente! O golpe infligido é dos mais graves.
Com efeito, não se trata de usar um termo estrangeiro, com roupagem estranha ou nacionalizada. A carga explosiva é sobre a Sintaxe, a parte mais íntima, delicada e respeitável de qualquer idioma. Não havendo barreiras que travem logo esta acção corrosiva, a Língua abastastarda-se, caminhando, a breve trecho, para a ruína total! Cuidado, pois!
“Prestem atenção!” Até aqui, nada a censurar! De facto, há uma expressão que, além de correcta, é delicada. Trata-se, afinal, do presente conjuntivo, na 3ª pessoa do número plural. Assim o exige o tratamento de cortesia, que usa as terceiras pessoas e recorre ao presente conjuntivo, usado ali como imperativo. O tratamento vulgar utiliza as segundas pessoas, em que entra ‘tu’ ou ‘vós’.
Bom! Onde o barco mete água é na segunda parte. Qual é o sujeito do termo ‘prestem’!? Vê-se claramente: vocês, os meninos, as meninas, os senhores, as senhoras, Vossas Excelências, o senhor Doutor. Ninguém se atreveria a tratar por tu esta gente respeitável. Portanto ‘lhes’ e não ‘vos’: “Vou ler-lhes”.

Lisboa - Belém // 23-12-1984
Notícia Apavorante
Em 18 do corrente ou seja terça-feira, ouvi uma notícia que me deixou sem fala. Ao chegar a casa, diz a mana Augusta: “Sabes uma coisa? O chefe Savimbi foi capturado pelo MPLA. Já estive a chorar!”
Perante o caso, emudeci! Assim que pude, tentei serená-la, indicando razões, que pareciam plausíveis. Inquiri, pois, acerca da origem da triste novidade e bem assim como eram os dizeres, em que ela surgira. Fazia-me forte e alegava contras, mas dentro de mim reinava o desalento. Entristeci-me, por maneira funda. Vieram conjecturas, umas sobre outras. Teria realmente sido capturado, no momento preciso, em que atravessava o rio Cubango?! De facto é ele que separa Angola, do Sudoeste Africano, pela banda de Leste. Aquela expressão “teria sido capturado” levantou-me dúvidas. Quem sabia?!
Não se trataria de boatos falsos?! Campanha orquestrada, para ver a reacção?! Tudo isto lembrou e muito mais ainda. Entretanto, havia um pormenor, que muito me intrigava: o silêncio total da África do Sul! Se vigiava a fronteira, com tanto afã como pude observar, durante 4 anos, junto à foz do Cuito, onde estava a base militar e o Liceu técnico, em que eu dava aulas!..
A Radio Renascença prometia mais notícias, logo que chegassem! Isto precisamente aumentava em nós aquela ansiedade que nos estava prostrando. Meu Deus! O chefe carismático , tão admirado e idolatrado, já nas mãos terríveis dos seus inimigos! Impossível de crer! Meu cunhado era de todos o mais pessimista! “Se, de facto o prenderam, já está morto!” Eu atalhava: “não creio em tal, porque seria terrível o embate a seguir”!

Lisboa - Belém // 24-12-1984
Continuação
Não obtendo mais novas que viessem acalmar-nos, assim nos deitámos, levando coração oprimido no peito! Que teria acontecido?! Divulgavam-se notícias, respeitantes ao Governo, as quais diziam, muito a propósito, que mandara retirar, do Mercado Angolano, rádios e pilhas. Isto, é claro, aumentava em nós a preocupação! Íamos pensar que haveria conluio, banindo a UNITA, que ficaria arrumada. Enfim, um montão de suspeitas, lamentos e ais!
No dia seguinte, ao chegar de Alcântara, apresentava a mana diferente cariz. Sorridente e calma, dispara logo, junto de mim: “Afinal, foi mentira!” Que grande alívio! “Quem desmentiu? A África do Sul e os Estados Unidos”! Bom! Ingente fardo me saiu dos ombros! Eu andava acabrunhado e muito receoso! Como ia convencer-me de tal desenlace?! Gritaria até, se fosse provado! Não sei mesmo que é que faria! Mas graças a Deus, que o não permitiu!
O chefe incontestado, que o povo angolano adora e ama, encontra-se livre, fora do calaboiço, para libertar a sua pátria formosa das garras ferozes de quem a não ama. Ele serve a pátria: não se serve dela! Aqueles olhos vivos que fuzilam raios, não foram vendados pelas trevas da morte! O seu coração, magnânimo e bom, continua pulsando pelo bem dos Angolanos. O seu espírito brilhante prossegue nas funções, para levar o conforto e a luz da esperança à querida Angola, mártir, santa e desolada!
Este amado chefe é intocável, por ser cá na Terra o penhor da Liberdade e o exemplo a seguir por todos os chefes. Há 20 e tal anos vivendo na ‘mata’, junto com os seus a quem proporcionou a luz e o pão!
Parabéns, Caudilho! Homem admirável! Encarnação da pura Liberdade! Esperança de todos! A alma de Portugal está sempre contigo, por ser a da Pátria- Mãe: não a dos estrangeiros!

Lisboa - Belém // 25-12-1984
É Natal!
Com este presente chega a 66 o número de Natais, quero dizer, as comemorações do dia festivo, em que lembramos, com regozijo, o nascimento do Menino Jesus. Dentre eles todos, só os primeiros 26 é que foram felizes. Os posteriores deixaram vazio, em maior número, no meu coração. Doença ou ausências, mortes ou desaires, duros contratempos e vários empecilhos, vieram sempre obstar à imensa alegria que é própria da quadra.
Os dos meus 27 já foram afectados por imensa angústia. Descolamento da minha retina, incerteza do futuro, desabar estrondoso de sonhos amados, que eram, de facto, vida e também esperança dos queridos autores da minha vida na Terra! Dezembro, 18.1952! Ocorre, neste dia o passamento do meu querido pai! Como foi triste esse dia tão alegre, enternecedor e tão carinhoso! Depois, era com minha mãe essa efeméride! Irmão e irmã distantes de mim! A grande raiz que me prendia à vida estava comigo, entretanto ela própria não vivia cabalmente essa grande festividade!
Há 20 anos já, partiu ela também, passando eu sozinho a viver o Natal! Sem lar nem família, aquele grupinho que brota do sangue e é feito de nós, que nos fala e move, encanta e seduz, alivia o mal e dá sempre gosto, para viver neste mundo, que Natal iria ser?!
Lembra-me bem. Encontrava-me em férias, na parte baixa desta cidade. Às 8 horas, ainda sem jantar, lancei-me no quarto da Pensão Marinho, fechei a porta à chave e não saí mais! Foi assim o Natal de 1964! Em seguida, ora sozinho ora em casa alheia, de velhos amigos, que vinham buscar-me.
Cheguei finalmente a 1984. Os que passei no Cavango (Sudoeste Africano), em número de 4, eram muito alegres, mas eu chorava: encontrava-me exilado, considerando-me estranho. Se me acarinhavam, maior tristeza invadia a minha alma. Hoje, nos fins-de-semana, já tenho minha irmã, a maior raiz que me prende à vida! Já não é mau! No outro mundo, será então o grande Natal.

Lisboa - Belém // 26-12-1984
“Os senhores espectadores não saiam dos vossos lugares!”
Foi durante o serão, nestes dias recentes. É vulgar, pela noite, ficar algum tempo olhando a televisão, quando o programa serve, realmente, para distrair ou fornece instrução, num ramo qualquer. Tratava-se do Programa: “Um, dois, três!” As cenas em foco decorriam animadas, pois tudo ajudava, quer o locutor, quer as personagens, que estavam agindo.
Ora bem. Quando as gentes de longe estavam esperando, ocorreu uma saída que pronto varreu o interesse, amortecendo em mim o gosto de prosseguir. Não poso admitir que os nossos locutores se exprimam assim, de maneira incorrecta; de facto, assim aconteceu. Não cheguei ao fim. Fui logo deitar-me, sendo um tanto laborioso conciliar o sono. Estava nervoso, assaz inquieto e bastante revoltado! Ninguém protesta?! Assumo eu já essa posição e faço-o vibrando, com toda a alma!
Não têm o direito de perpetrar solecismos os que se arvoram em chefes, levando os ignorantes a corromper a Língua! Não teve ela, no passado, exímios cultores?! Se ouvissem o dislate, que diriam por exemplo, Vieira e Bernardes, Herculano e Sousa, Castilho e Latino, Camões e Garrete?! Isto, é claro, para não falar de outros!
Deixo, pois, aqui, a forma correcta, que deve acarinhar-se, para ser usada por todos os Portugueses: “Os senhores espectadores não saiam dos ‘seus’ lugares”. Falar de outro modo é apunhalar a Língua de Camões e de Castilho! De facto, a expressão respeitosa ‘Senhores espectadores’ é da terceira pessoa, o que obriga, desde logo as demais palavras a seguir-lhes o exemplo. O pronome adjunto ‘vossos’ é da segunda pessoa e não da terceira.
A Língua Portuguesa, tratando por senhor, utiliza sempre a terceira pessoa, fale embora para a segunda. Não esquecer: fala-se para a segunda, mas emprega-se a terceira, como tratamento de cortesia.

Lisboa - Belém // 27-12-1984
”Ter um bocado de aquela”
O nosso povo, embora ignorante, é mestre abalizado na escolha de termos e certas expressões, que utiliza amiúde, em seu linguajar. Sucede, por vezes, não acharmos lógica nem filiação, para os seus dizeres, mas a verdade é que ele os apropria, servindo-se deles, quando a propósito. Não faz excepção o que vemos ao alto. Se alguém descuidado ouve aquilo, num diálogo, fica desde logo assarapantado, não achando maneira de penetrar no sentido.
É preciso observar as circunstâncias exactas, em que tais dizeres surgem espontâneos. De outro modo, não vemos saída, que nos dê uma aberta! Efectivamente a palavra ‘aquela’ costuma ser um pronome, ora adjunto, ora absoluto. ‘Esta mulher é alta, mas aquela é baixa’. Dicionário e Gramática se é que não me engano, registam apenas tais categorias. Sendo assim, como descobrir-se, na dita expressão, o verdadeiro sentido?! Dá-nos logo a impressão de que é um substantivo.
Aqui deixo algumas frases, em que o termo aparece, como se fora, realmente, verdadeiro substantivo. “O teu familiar não teve ‘aquela’ comigo”. “João Pancrácio não tem ‘aquela’ por nenhuma pessoa”. “O pai dele era outra coisa, pois sempre tinha ‘aquela’ fosse por quem fosse”.
Por estes dizeres, infere-se logo o genuíno sentido que deve atribuir-se à palavra ‘aquela’ Ressalta facilmente: consideração, respeito e gentileza, atenção e estima, afecto, acatamento; e o mais que falta.
Há outros casos (deve tratar-se de provincianismo), em que a palavra ‘aquela’ tem outro sentido. Vejamos um exemplo. “Eu estava ‘nàquela’ (na aquela) de que ele já tinha vindo há mais de uma semana”. Aqui significa: ideia ou concepção, pensamento ou juízo, convicção ou tendência. Portanto, ‘estar nàquela de que’, significa: julgar, pensar, cuidar, estar convencido.

Lisboa - Belém // 28-12-1984
Bom dia! Bom. A angústia
A nossa vogal nasal afasta-se, por vezes, do padrão fonético. Significa isto que deixa de ser média, para ficar aberta. Baseio-me ao presente, na abertura dos lábios. De harmonia com ela designamos as vogais por abertas ou médias ou ainda fechadas, servindo para exemplo, respectivamente: avó, fé, avô, ovo, se. A abertura média verifica-se, ao que julgo, em todo o país, com excepção do Minho, em que há tendência marcada, para abrir sempre a vogal nasal: amo, amanhã. Entretanto, como não há regra que não tenha excepção, mais uma vez o caso se verifica.
Na expressão “bom dia!”, nota-se em geral a pronúncia ‘bóm’. A gente do povo, usando o plural, pronuncia ‘bós dias’. Neste caso, desaparece logo a nasalação, de maneira total. No singular, permanece ainda, embora a vogal soe como aberta: ‘bóm dia!’ Encontrando-se isolada a palavra “bom” não sofre desvio na sua pronúncia (bõ). Afigura-se, pois, que sendo tónica a sílaba, mantém a pronúncia usual: “isso é bom”. Sendo proclítica ou menos acentuada, já foge à regra.
Achando-se a vogal em princípio de palavra, surgem dois casos: 1. tónica; 2. átona. Sendo ela tónica, mantém-se por norma a pronúncia habitual: a ânsia; a ênfase; o êmbolo; a honra. Sendo átona, como em ‘a angústia, já tende para aberta se, antes dela houver um artigo (àngústia).
O mesmo se verifica em casos semelhantes: a ansiedade, a antena, a andorinha, a ambiguidade. Já é diferente, no caso de ser tónica a sílaba inicial: a ânsia.

Lisboa - Belém // 29-12-1984
O caso de Juliana
Conquistou simpatia esta jovem, brasileira, que actua com brilho, na telenovela. A sua ingenuidade, insinuantes modos e atitudes infantis geram admiração, conquistando o público. É algo diferente das outras mulheres. A sua meiguice torna-a diferente. Eu, pessoalmente, não deixo de admirá-la. Humanamente, sem descer a pormenores ou então vasculhar a sua vida íntima, qualquer homem a aceita, com muito carinho.
Entretanto, como todos nós havemos de prestar contas a um Ser que nos protege e de quem dependemos, inteiramente, é … … , tomá-Lo a sério na vida que levamos. Ele compromete-se a ajudar-nos sempre, sendo nós fiéis e observadores da sua Lei Santa – os dez Mandamentos. Caso contrário, retira a sua mão, deixando-nos entregues à nossa miséria.
Bom! Uma vez neste ponto, surge a pergunta: a celebrada Juliana será, na verdade, uma jovem ideal?! Faço a pergunta dos rapazes sensatos, que desejam para si uma noiva ‘atestada’. Quereríeis, por ventura, que a rainha do lar fosse exactamente como Juliana?! Que a mãe de vossos filhos agisse como ela?! Que estanciasse numa Ilha com outro desconhecido?! Qual de vós, após isso, iria pedi-la, com o fim de casar?! Creio bem que nenhum!
Além do mais, julgo de leve um acto sério – o casamento. Neste campo atinjo o Mundo, por medida igual. Casam realmente (na telenovela) e, sem mais nem menos, por motivo sem base, ameaçam logo separar os destinos! Onde a seriedade que deve presidir a tais compromissos?! Que péssimo exemplo, dado nesta hora, à nossa juventude! Parecem, na verdade, caprichos de bebé!
Não me conformo com tais saídas! Casos há na vida que não podem tratar-se, com leviandade! Gostaria um filho de ter mãe como ela?! Apreciaria um pai a atitude de uma filha, que imitasse o seu exemplo?! Julgo bem que não! O casamento é sério demais, para tanta criancice! Não precisamos, não, de exemplos corrosivos!

Lisboa - Belém // 30-12-1984
Uma Tulipa
Fui, há poucos dias ao Alto de S. João. Refiro-me agora ao cemitério local. Vai ali muita gente, como é natural. Uns acompanham os mortos; outros vão rezar pelas almas benditas dos entes queridos; outros ainda levam consigo belos ramalhetes de lindas flores, para adorno das campas. Haverá também alguns forasteiros, que desejem admirar os formosos jazigos, que se erguem, à entrada, ou o Forno Crematório. Motivos diversíssimos impelem as gentes.
O caso especial, a que agora me reporto é o de uma jovem, que levava nas mãos viçosa tulipa. Era, realmente, uma obra-prima! Haverá, por ventura, muitas donzelas iguais a ela? Sendo assim, é natural. Apesar de tudo, olhando ao tempo, à falta de flores, nesta quadra do ano e tomando em conta o vivo das cores, o volume da flor e a sua harmonia, fui realmente colhido por alta surpresa. Haverá talvez alguma estranheza, na minha reacção?! Sendo realmente assim, ninguém haverá sentido bastante fundo o embate da beleza que a tulipa originou.
Motivos pessoais que me atingiram na alma há coisa de 20 anos, é que foram causadores de tamanho alvoroço! Não desço a pormenores, porquanto, às vezes, é melhor esquecer! No entanto, o que a flor me sugeriu, trazendo ao de cima factos do passado! Levariam decerto a viragem completa, na minha existência! Teria sido melhor? Seria pior?! Quem pode responder, fazendo-o com acerto? Apenas Deus é senhor dos segredos e conhece o futuro!
Havendo-se operado essa alteração, que esteve iminente, de 1962 a 1963, que teria acontecido?! Possivelmente, viveria aqui também ou noutro lugar, bastante populoso. A minha vida seria de facto outra, bem como as circunstâncias, que iriam decerto acompanhá-la. Como Deus me afastou de levar a efeito o que fora sonhado, talvez fosse melhor! Estou em crê-lo. O Senhor proteja e cumule de bênçãos quem tomou parte nessas diligências, que a formosa tulipa veio lembrar!

Lisboa - Belém // 31-12-1984
Crianças Pobres. Pobres Crianças!
Há crianças pobres e pobres crianças. Não é a mesma coisa, evidentemente, embora as palavras sejam as mesmas. No primeiro caso, há falta de recursos, para elas viverem: carecem, pois, do que é necessário. Note-se, a propósito, que o adjectivo ‘pobre’ muda no sentido, conforme o lugar, ocupado na frase. A posição normal, no idioma português, é depois do substantivo: criança pobre. Claramente vemos que tem falta de recursos, para viver dignamente.
Se, porém, vier antes, o sentido é já outro: “pobre criança”! Dá-se a mesma coisa com outros adjectivos. A diferença de posição carrega a palavra de alta emoção e vivo sentimento, provocando logo funda compaixão e terna piedade! Está-nos ocupando o rico adjectivo, emocional. Com ele em uso, podemos suavizar o sofrimento e a dor que amarguram o mundo! Será glorioso para um cristão tomar isso a peito, fazendo diariamente uma obra boa.
Sirva de exemplo Antonino, o Pio, imperador de Roma: sendo embora pagão, tinha o caso por hábito. O exame de consciência era feito, à noite, sobre tal assunto. O adjectivo emocional pode servir-nos de meio. Qual é, exactamente, o seu campo de acção? É muito vasto! Fixemos alguns pontos, de maneira geral: pais de família e respectivos filhos; os professores e seus alunos; priores e paroquianos; treinadores de jogo e desportistas.
Os educadores nunca devem exaltar-se nem falar com arreganho, procurando evitar palavras duras ou termos ofensivos. Ponto capital: criar ambiente alegre, ser indulgente e compreensivo, justo e igual para com todos; gerar simpatia; ganhar confiança; jamais dizer que não castiga; ignorar pequenas faltas e esquecer leves transgressões; fazer as chamadas, sem método certo; nunca chamar apenas um deles à lição do dia; haver boa harmonia entre os educadores; evitar ao máximo castigos físicos; ser moderados, em ajustes de contas.

Lisboa - Belém // 31-12-1984
O Clero em Portugal
Em tempos idos já um pouco distantes, formava um juízo, que estava falseado. Nunca saíra do berço natal. Encerrado na aldeia, só aos 15 anos dela saí, para início dos estudos, na vila do Fundão. Antes dessa data, fora eu apenas a Celorico da Beira, Salgueirais e Prados. A estação ferroviária, que fica apenas a 10 quilómetros, não fazia excepção. Quanto mais Portugal e seu território!
Bom! O tempo foi correndo, pois ele não pára, e, a pouco e pouco, foram-se alargando os meus horizontes. Para fora do País, só bastante mais tarde. Esta circunstância criara no meu espírito uma ideia errónea, unifaciada, acerca do clero e seus problemas. Os tempos decorreram, ampliaram-se mais os meus horizontes, e eu, igualmente, engrossei também o meu saber. Conviver é necessário e muito útil. O que mais aproveitou foi lidar com Alemães, Sul-Africanos e Holandeses. Houve outros contactos, mas a nível diferente e em grau inferior.
O pontapé de saída, para o meu evoluir, deu-se em Portugal, numa rua de Lisboa, lá para a Baixa. Há já uns bons anos! Sem cabeção, dirigi-me a um lugar, com o objectivo de limpar os sapatos. Havia ali uns 4 elementos, que faziam pela vida.
Bom! Entro no local, avisto prestesmente objectos diversos, atinentes que eram a sapateiros e observo os rapazes. Anunciado o intento que logo originou uma pausa breve, eles prosseguiram, sem dar importância à minha presença. Era uma linguagem que faria corar os mais despudorados! Quanto havia de grosseiro, rústico, obsceno e até vergonhoso, vil e crapuloso tudo vinha a pêlo. Fiquei horrorizado!
O mundo abriu-se, ante a minha pessoa, tal-qualmente ele era! Até ali, eu andara enganado, quero dizer, criara-se à minha roda um ambiente fictício. Deste modo, vivendo eu embora, cá neste mundo, não o conhecia: era um estrangeiro, no meio da sociedade, em que não me aceitavam.